Toda a música na vida de Joshua Abrams cabe num guimbri

Fazedor de uma música hipnótica de digestão lenta, Joshua Abrams apresenta-se no Serralves em Festa e na ZdB com o projeto Natural Information Society. Em 2015, foi seu um dos melhores álbuns do ano para a Wire.

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Joshua Abrams dr
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Natural Information SocietyTrio dr
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Joana Gama Eduardo Brito
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Batuk South Africa dr
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Plano B dr
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Norberto Lobo Miguel Nogueira

No final da década de 90, Joshua Abrams já espalhava a sua música por várias formações de jazz ou por bandas de rock virado do avesso na cidade de Chicago, mas estava sobretudo associado aos minimalistas Town and Country. Foi nessa altura que uma viagem a Marrocos preparou o caminho para um pequeno terramoto no seu percurso musical. Contrabaixista e baixista habitual, Abrams já tinha ouvido a sonoridade do guimbri (uma espécie de alaúde-baixo, instrumento fundamental da música gnawa), mas nunca tinha visto um exemplar à sua frente. Na sua passagem por Essaouira, resolveu comprar um e o contacto de então com Najib Sudani, um dos mestres do instrumento de três cordas, foi o suficiente para colher os básicos ensinamentos técnicos para voltar com mais do que uma peça de colecção, mais do que uma mera recordação de viagem.

Na ancestral tradição gnawa, o guimbri está associado a cerimónias com propósitos curativos e é dos mais fortes indutores do tom hipnótico desta música magrebina. De regresso a Chicago, Abrams não pretendia, naturalmente, dedicar-se à medicina alternativa ou sequer reproduzir uma música que nada tinha que ver com a sua realidade. Mas a notícia do guimbri de Joshua rapidamente chegou aos ouvidos do baterista Hamid Drake, verdadeira lenda do jazz e ligado à exploração de percussões de diversas geografias, que logo começou a inquirir o baixista sobre a sua dedicação e os avanços no instrumento.

Esse encontro entre os dois havia de levar à primeira gravação de Abrams com o guimbri, fixada no álbum From the River to the Ocean (2007), liderado por Drake e Fred Anderson. “Através dessas experiências”, explica Joshua ao PÚBLICO, “o guimbri começou a exercer grande influência sobre mim e, embora tenha algumas limitações, comecei a perceber-lhe também um enorme potencial e a ver nele uma forma de juntar todas as influências que já tinha.”

O guimbri tornar-se-ia a peça nuclear do projecto Natural Information Society, que Abrams fundou em 2010 e que apresenta sábado e domingo no Serralves em Festa (Porto), e segunda-feira na ZdB (Lisboa). Sobretudo porque o conceito musical que Joshua Abrams pretendia desenvolver se prendia com duas características: o contínuo e a improvisação. Querendo isto dizer que não lhe interessavam “contrastes súbitos”, um dos mandamentos da música contemporânea, antes queria que as peças evoluíssem sem sobressaltos, combinando partes escritas com a liberdade interpretativa dos músicos que chama, a cada momento, para integrarem esta sociedade. “Queria explorar algo como se fosse a viajar de comboio, em que a paisagem vai mudando, mas em que isso acontece quase sempre de uma forma gradual”, compara.

“E senti no guimbri algo de positivo, algo que permite limpar a mente e focar a energia.” Ou seja, a Natural Information Society não depende necessariamente do instrumento, mas a verdade é que este parece tão intrinsecamente ligado ao conceito que custa a crer que se venham algum dia a separar.

Banda portuguesa

Estando fortemente ligado ao circuito da improvisação, Joshua pensou a sua Natural Information Society como uma formação aberta, em que os músicos podem entrar e sair a cada momento. Assim, em Serralves, ao núcleo duro formado por Abrams, Lisa Alvarado, Ben Boye e Mikel Avery – “este núcleo torna mais óbvio para quem entra a música que queremos fazer”, explica –, junta-se uma comitiva nacional formada por Norberto Lobo, Angélica Salvi, Yaw Tembe, Gustavo Costa e João Pais Filipe. Na ZdB, Abrams tocará em quarteto, depois de uma actuação sua e de Norberto Lobo a solo.

Alvarado e Boye fazem ainda parte do grupo alargado a Emmett Kelly, Jeff Parker e Hamid Drake que gravou com Joshua Abrams Magnetoception, terceiro melhor álbum de 2015 nas contas da revista Wire e um dos álbuns destacados na música exploratória do ano passado. A música de Magnetoception surgiu a partir do desafio do editor da Eremite Records, desejoso de ouvir em disco as peças mais alongadas e desaceleradas que a Natural Information Society desenvolvia em concerto. De certa forma, é o ponto mais longínquo a que Abrams se permitiu ir nesta ideia de uma música que partilha as qualidades hipnóticas e de transe com o gnawa, reclamando um espaço e um tempo para a música raros nos dias que levamos. Chicago pode, afinal, não ser assim tão distante de Essaouira.

E ainda em destaque no Serralves em Festa

Odisseia no espaço

Em 2003, quando criaram esta peça que se tornou um clássico instantâneo do novo circo, Phil Soltanoff e Aurélien Bory não tinham como imaginar que os seus homens de negócios num plano inclinado poderiam vir a tornar-se uma bela metáfora visual da crise financeira que se abateu sobre o mundo poucos anos depois. Segundo capítulo de uma trilogia acerca do espaço da Cie. 111 (IJK foi o primeiro, Plus ou Moins l’Infini o último), Plano B regressa agora a Portugal em nova remontagem, à atenção dos espectadores que não viram o espectáculo na digressão de 2005 que o inscreveu no imaginário colectivo. Seguramente, um dos blockbusters desta edição do Serralves em Festa (com filas a condizer…). Inês Nadais

Clareira das Azinheiras, sábado e domingo, às 22h

Os limites da percepção

Strata.2 , a peça que a coreógrafa e bailarina italiana Maria Donata D’Urso traz ao Serralves em Festa, coloca-a na exacta fronteira onde gosta de situar os seus trabalhos que desafiam os limites da percepção do espectador: o limiar entre a dança e a arquitectura, entre o real e o virtual, entre o analógico e o digital. Construída em torno de uma estrutura elástica e deformável com que o corpo da intérprete é forçado a negociar, às vezes impondo-se, outras vezes aceitando a dominação, esta instalação-performance desdobra-se em dois solos, o positivo e o negativo um do outro, ambos revelando-se, incandescentes, na câmara escura do palco. I. N.

Auditório, sábado às 22h; domingo às 17h e às 22h

O mantra de Satie

Em 2016, a pianista Joana Gama tem vivido sob a influência de Erik Satie. Ou melhor, tem mostrado em palco essa influência que carrega. Para o ano em que se comemora um século e meio passado sobre o nascimento do pianista e compositor francês, Joana Gama criou Satie 150, concerto que tem levado a todo o país e no qual a música de um dos mestres das vanguardas francesas de início do século XX é acompanhada de satélites que a complementam – John Cage ou Arvo Pärt, por exemplo. No Serralves em Festa, porém, o concerto será dedicado em exclusivo a Satie. Joana Gama interpretará pela primeira vez Vexations, obra descoberta postumamente em cuja partitura se lia a indicação “Muito lento” e a nota: “Para se tocar 840 vezes este motivo, será aconselhável preparar-se de antemão, no maior silêncio, e na maior imobilidade”. A estreia em 1963 envolveu 10 pianistas e demorou 18 horas. Joana Gama não interpretará a obra completa. Mas teremos 40 minutos para absorver pelas mãos da pianista os efeitos deste mantra “satiano”. Mário Lopes

Auditório, sábado às 17h

Um novo baile sul-africano

É o encontro de dois músicos e produtores, Spoek Mathambo e Aero Manyelo, com uma artista e cantora, Manteiga. Chamam-se Batuk e reuniram-se em Joanesburgo, África do Sul, mas a sua música tem fronteiras mais vastas. Música da Terra, o álbum de estreia editado recentemente, é um álbum de activismo – contra a misoginia, como em Puta; para que a sociedade civil africana se erga contra as guerras que minam vários países do continente, como em Gira.  É, também, um vibrante encontro musical: ritmos electrónicos urbanos, moldados na house ou no techno, mas transformados pela contaminação com outras tradições musicais – dos cantos corais do Soweto ao zouk chegado a África vindo das Antilhas. Música da Terra, que conta com colaborações de músicos sul-africanos, moçambicanos e ugandeses, será a base do concerto que a banda levará a Serralves. Mais tarde, dia 1 Julho, em Lisboa, os Batuk serão convidados dos Buraka Som Sistema no concerto de despedida dos autores de Wege wege (muito a propósito, diga-se, dada a natureza da música de ambas as bandas). M.L.

Prado, sábado às 24h

Guitarra abençoada

São quase dez anos. Foi em 2007 que chegou Mudar de Bina, o álbum que nos apresentou o talento de Norberto Lobo, guitarrista que acertou à primeira e que não parou de acertar nos anos e discos que se seguiram. Em Fornalha, o último, a guitarra já é “apenas” o rastilho para que Norberto parta para longe na exploração do som. A marca autoral, nascida do imenso talento enquanto guitarrista e da sensibilidade com que dá forma a essa dádiva, é evidente desde o início. Na génese da sua música encontrávamos os sons de fingerpickers americanos como John Fahey, os bordões da música indiana ou um vulto como Paredes (citado livremente no título do álbum de estreia). Todos eles habitam ainda a alma criativa de Norberto Lobo, mas à medida que foram sendo editados novos álbuns (Pata Lenta, Fala Mansa) e que fomos ouvindo novas colaborações (o trio Tigrala, a parceria com o baterista João Lobo), tornou-se cada vez mais claro que o seu mundo acolhe muitos mais. Tornou-se também claro, sem paradoxo, que a música que cria emana, límpida, directamente do seu criador. Não por acaso, os seus concertos são habitualmente um cenário de maravilhamento: o do músico perante o som, o dos espectadores perante a música que o músico ergue perante eles. Um dia depois de o vermos no concerto de Natural Information Society enquanto convidado, iremos recebê-lo para novo reencontro, nova sessão de descoberta. M.L.

Ténis, domingo às 21h30

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