A sucata e o imperativo moral

No mundo do direito e da Justiça, há histórias com um final feliz e em que o bom senso impera. Foi o caso do José, que tinha umas instalações com um espaço destinado a armazenamento e separação de resíduos de cobre, resíduos de equipamentos eléctricos e electrónicos, metais ferrosos e alumínio, que depois transportava para outro local, onde os vendia.

Era uma pessoa, nos dizeres do tribunal, de “rudimentares habilitações literárias”, dedicando-se à compra e venda de sucata e vivendo, há cerca de dez anos, com uma companheira de quem tinha três filhos com as idades de 11, 10 e 8 anos.

Acrescente-se que o José não tinha licença para ter em seu poder, armazenar, tratar, separar e transportar aqueles materiais e substâncias. De resto, não tinha, sequer, procurado saber se precisava de algum tipo de licenciamento para manusear aqueles materiais, porque tinha considerado que era suficiente o facto de se ter colectado nas Finanças.

Estes os factos apurados pelo tribunal que o julgou e condenou — ou melhor, que confirmou a condenação  proferida pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve (CCDRA) pela prática da contra-ordenação de falta de licenciamento da actividade de tratamento de resíduos. Para simplificar, foi condenado no pagamento de uma coima de 10.000,00 euros (para os amantes das leis: coima prevista e punida pelo n.º 2 do artigo 9.º, conjugado com os artigos 12.º, n.º 2, 23.º, 24.º e 67.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei 178

2006, de 5 de Setembro, pelo artigo 22.º, n.º 4, alínea a), da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, e pelo artigo 18.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro).

Um verba muito elevada para o José, que nunca teve acesso a financiamentos no BPN, nem no Banif, nem no BPP, nem no BES, para desenvolver os seus projectos como empreendedor. Ainda pensou em pagar os 10.000,00 euros da coima com sucata, como outros pagaram, com sucesso, os milhões e milhões que recebidos em créditos bancários, mas o seu advogado dissuadiu-o de tentar essa negociação. Provavelmente, faltavam-lhe bons contactos.

O melhor mesmo seria recorrer para o Tribunal da Relação de Évora da decisão do tribunal de 1.ª instância, que confirmara a coima aplicada pela CCDRA. Para o seu advogado era evidente a injustiça da situação: o José estava convencido que se encontrava legalmente autorizado a exercer a actividade de sucateiro. Não tinha culpa, não sabia que era preciso uma licença, estava errado, mas não lhe era censurável a sua ignorância.

O caso aterrou nas secretárias dos juízes desembargadores João Gomes de Sousa e António Condesso que entenderam que “a questão central reside no saber se a um cidadão que é ‘pessoa de rudimentares habilitações literárias’ é exigível saber — depois de ter declarado a sua atividade ao Estado e supostamente ter pago os respetivos impostos — que ainda tem que continuar a percorrer a via-sacra administrativa numa outra qualquer entidade”.

Consideraram aqueles magistrados que estava em causa uma contra-ordenação e  não um crime, sendo que muitas contra-ordenações punem comportamentos que em si mesmos não têm qualquer desvalor ético. O seu desvalor social vem exactamente da sua classificação como contra-ordenação. Enquanto qualquer pessoa sabe que não se deve roubar ou matar e que existe uma punição para quem o faça, já a necessidade de obter uma licença para comprar e vender sucata não será certamente um imperativo moral generalizado. 

E se, no caso de uma sociedade ou de um cidadão razoavelmente informado não haveria muitas dúvidas em considerar que lhes seria exigível saberem da necessidade da licença, já quanto ao José a questão não era evidente.

O José declarara que sempre fora sucateiro de profissão, que se colectara nas Finanças e que não achou que fosse preciso mais do que isso, razão pela qual nada mais perguntara a ninguém nem em serviço algum sobre tal matéria. Vivera esforçadamente no meio da sucata até lhe cair o direito contra-ordenacional em cima.

Constataram os juízes desembargadores que ninguém se tinha  preocupado em apurar se o José já tinha sido condenado por facto idêntico, pelo que tinham de  considerar que era a primeira vez. E ponderaram que, se o José era um primário, porque não tinha antecedentes e tinha as comprovadas rudimentares habilitações literárias, “não cairiam os parentes na lama se o mesmo, tratando-se do primeiro ilícito, fosse avisado da proibição legal e lhe fosse concedido prazo para a regularização da atividade”. E, assim, consideraram existir da parte do José um relevante e não censurável erro sobre a proibição da actividade de sucateiro sem licença, e, no passado dia 10 de Maio, absolveram-no.

O advogado do José não terá ganho muito dinheiro com esta defesa, mas escreveu uma bela página da sua profissão.

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