O governo de esquerdas na Europa, e as suas consequências democráticas

O “governo de esquerdas”, em Portugal, é a solução preferida pelos eleitores dos partidos de esquerda.

Pediu-me a secretária-geral adjunta do PS, Ana Catarina Mendes, para – no âmbito do ciclo de debates do XXI Congresso Nacional do PS –, organizar um debate sobre o “governo de esquerdas” ou “governo de esquerda plural”, como outros lhe preferem chamar. Há muito que defendo tal solução, em estudos académicos publicados em livros ou artigos, na imprensa e na vida cívica. A sessão terá lugar a 3 de Junho (18h30m-20h) no Hotel Myriad, no Parque das Nações, e será aberta. Sistematizar ideias sobre a importantíssima mutação que representa o “governo de esquerdas” na democracia portuguesa (e europeia) é hoje fundamental, pela histeria argumentativa e pelo rol de inverdades que por aí andam. Tudo tem servido para acicatar a histeria anti-comunista e anti-bloquista (primárias, sublinhe-se), assim como a oposição a um PS alinhado à esquerda, e para defender o regresso dos socialistas ao regaço da direita (de onde a direita, e os “socialistas de direita”, desejariam que ele nunca tivesse saído). É crucial uma defesa positiva de tal solução.

A solução “governo de esquerdas” encontrada em Portugal, ou seja, um governo minoritário dos socialistas apoiado no parlamento pelos partidos da chamada esquerda radical (1) (BE, PCP e PEV) é apenas uma das várias soluções deste tipo de governo. A outra é o governo de coligação em sentido estrito, ou seja, aquelas soluções em que todos, ou quase todos, os parceiros da aliança têm ministros no governo. Há ainda um outro tipo de governo (de coligação ou minoritário com apoio parlamentar fixo) que não sendo bem um "governo de esquerdas" inclui as várias esquerdas (ou pelo menos as radicais), ou seja, aquilo que na ciência política chamamos os “governos arco-íris”. Exemplo: os governos do Syriza com os nacionalistas conservadores do ANEL, desde 2015.

Durante o período da Guerra Fria (1947-1989), em apenas três países (Finlândia, França e Islândia) houve governos – num total de 11 soluções governativas em 37 anos – com a participação de partidos da “extrema-esquerda” (sobretudo comunistas) ou “esquerda radical” (“socialistas de esquerda”, etc.). Pelo contrário, após o final da Guerra Fria (1990-2015), em 12 países (Chipre, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Islândia, Itália, Noruega, Portugal e Suécia) houve governos – 26 soluções governativas em 26 anos – com a participação de partidos da “esquerda radical” (renovadores comunistas, socialistas de esquerda, alianças verdes-vermelhas, “verdes”, etc.). Portanto, o que a haveria a explicar, de 1989 até final de 2015, exclusive, seria a singularidade do caso português, não o contrário.

Mas porquê só agora o “governo de esquerdas” em Portugal? E com que consequências para o funcionamento do sistema político democrático? Sintetizo apenas alguns dos mais salientes. Um dos fatores fundamentais para explicar esta aliança, em final de 2015, tem que ver com um forte movimento do PSD para a direita. Desde 1978, em termos de posicionamento dos partidos na escala esquerda-direita (1, esquerda, a 10, direita), segundo as perceções dos eleitores portugueses, o PSD oscilou entre um mínimo de 6,8, em 1985, e um máximo de 7,6, em 2011, colocando-se sempre à esquerda do CDS-PP; em 2012, o PSD ultrapassou pela primeira vez o CDS-PP (7,6) pela direita (8,0) e manteve-se em sobreposição total com este partido em 2014 e 2015 (7,9 e 8,2). O PS, pelo contrário, sempre foi um partido muito centrista, muito próximo do ponto central da escala (sobretudo desde 2002), muito mais centrista do que os partidos da sua família europeia. Dados do European Election Study têm revelado, reiteradamente (2004, 2009, 2014), que os socialistas portugueses estão bastante mais ao centro do que a maioria dos partidos desta família política na Europa; pelo contrário, os partidos da esquerda radical portuguesa são convergentes com as posições dos membros das suas famílias partidárias europeias. Tudo isto resultava numa fraca diferenciação das alternativas políticas entre o PS e o PSD (as distâncias entre PS e PSD, 2004, 2009, 2014) eram das mais baixas no contexto europeu, nomeadamente devido à política de alianças até final de 2015.

Ora sabemos bem que, primeiro, a clareza das alternativas é uma condição sine qua non da qualidade da democracia: para haver escolhas, dos eleitores, é necessário que haja diferenças programáticas significativas entre os partidos. Em segundo lugar, basta consultar qualquer revisão de literatura séria sobre o populismo para se saber que um dos fatores explicativos recorrentes é o conúbio permanente, a aliança e indiferenciação permanentes, entre o centro-esquerda e o centro-direita. A Áustria do pós-guerra, com os seus recorrentes «governos de grande coligação», ou seja, juntando permanentemente «na mesma cama» os conservadores, do ÖVP, e os sociais-democratas, do SPÖ, ilustram-no à exaustão. E não vale a pena verter lágrimas de crocodilo se não quisermos perceber as causas. Portanto, esta solução pode ajudar a incrementar a qualidade da democracia em Portugal, seja por via da clareza das alternativas, seja por via do combate ao populismo.

Além disso, os entendimentos preferenciais entre o centro-esquerda (PS) e o centro-direita (PSD), com a correspondente marginalização da esquerda radical, podem também estar por detrás de uma certa cartelização do sistema político, mediático e económico em Portugal, com uma forte circulação das elites do PS e do PSD entre o sistema político (governativo) e as grandes empresas portuguesas/os grandes grupos económicos privados. Ora um sistema político mais inclusivo, incluindo os cerca de 12% a 18% dos eleitores da esquerda radical também na esfera governativa, e mais inovador, não excluindo por princípio qualquer solução de governo, é positivo para a democracia; positivo para a democracia será também não termos um sistema político demasiado conluiado com os grandes interesses económicos, com tínhamos até finais de 2015.

O “governo de esquerdas”, em Portugal, é também a solução mais preferida pelos eleitores dos partidos de esquerda (PS, BE e PCP/CDU). Sucessivos inquéritos, em 2009, em 2012, em 2014 e em 2015, têm-no relevado. Entre os eleitores do BE e do PCP/CDU têm havido sempre maiorias absolutas de inquiridos a favor de alianças governativas com o PS. No seio do PS, as alianças com a esquerda radical têm sido sempre defendidas por pelo menos uma maioria relativa de eleitores socialistas; em qualquer caso, tais maiorias no seio do PS têm sido sempre muito maiores do que as percentagens de eleitores socialistas que defendiam alianças com a direita. Havia era, até final de 2015, uma incongruência pronunciada entre as elites partidárias dos partidos de esquerda (relutantes quanto ao “governo de esquerdas”) e os seus eleitores (maioritariamente a favor). Portanto, se considerarmos que a qualidade da democracia depende em boa medida do ajustamento das preferências dos representantes face aos representados, pois só assim o policy making democrático refletirá as preferências dos cidadãos, então temos de concluir que esta solução de governo tenderá a alinhar mais as elites e os eleitores dos partidos de esquerdas e, por essa via, a incrementar também a qualidade da democracia.

Finalmente, mas não menos importante, se esta solução perdurar no tempo, se se revelar estável e se for relativamente bem-sucedida, poderá trazer uma pressão significativa no sentido de uma Europa mais social e mais democrática, que proteja mais as minorias territoriais (isto é, os pequenos Estados), sobretudo se contagiar outros países. Por isso também há tanta pressão das forças instaladas na Europa, mormente alinhadas à direita, para que tal não suceda.

Politólogo, Professor do ISCTE-IUL

(1) Uma designação que adotamos aqui no seu sentido técnico, não pejorativo, ou seja, designando os partidos que se situam à esquerda, e não na esquerda, dos socialistas e sociais-democratas, e que, adicionalmente, defendem mudanças de raiz no sistema socioeconómico e sociopolítico. 

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