Benditas canções de protesto por Anohni

Um álbum magnífico. Uma metamorfose surpreendente. Antony agora é Anohni, uma voz de protesto para aventureiras canções electrónicas.

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Antony reinventou-se como Anohni: excelente notícia ALICE O’MALLEY

A tentação de criar canções políticas de protesto tem sido uma constante da história da música popular. Mas dir-se-ia que nas últimas décadas o efeito diluiu-se. São poucos os músicos que o fazem hoje com total convicção, pelo menos ao nível dos que operam no centro do mercado.

E os que o fazem tendem a ser logo catalogados. Ou como cândidos, porque está provado que não vão mudar nada. Ou como cínicos, porque têm sempre segundas intenções comerciais. Ou como fazendo parte de um sistema capitalista que os absorve inevitavelmente. Ou como desejando apenas protagonismo. Ou como sendo simplistas, porque apontam o dedo sem apresentar grandes soluções. Ou como estando amarrados ao tempo, porque evocam situações que acabarão por ficar datadas.

Felizmente existe quem mande todas estas teorias dar uma volta e queira que a música popular se volte a conectar com a experiência da vida, num momento histórico de grandes convulsões sociais, políticas ou ambientais. Existe o risco do simplismo, da temporalidade ou de se contribuir para a perpetuação de um sistema que supostamente se quer colocar em causa? Sim, é esse o risco de quem não se acomoda a ver a vida passar ao lado. Mas quando se tem consciência do chão que se pisa também se percebe que é possível contribuir para a mudança, com a noção de que leva tempo, exige constância e produção de esperança.

Antony Hegard (dos Antony & The Johnsons) foi sempre consciente da realidade em seu redor. Em 2000, dizia-nos a propósito da canção Another world, uma das mais directas que havia feito até aí: “Cresci no final do século XX, uma fase alienante do mundo ocidental. Actualmente talvez mais pessoas estejam abertas para serem honestas com a realidade e isso é bom. Mas sinto que estamos num período em que já não nos podemos escudar na ideia de que não vamos sofrer com o que está a acontecer. É mesmo preciso fazer alguma coisa.”

Dir-se-ia que, com a sua nova identidade, Anohni, vai mais longe. Deixou-se de relativismos. Faz um manguito ao cinismo. A destruição ambiental, as políticas de género, a pena de morte nos EUA, o sonho americano transformado em pesadelo, a privacidade elevada a assunto de estado, o capitalismo selvagem, o legado de Obama e a progressiva passagem da esperança à desilusão são abordados de forma directa. Por vezes simplifica, mas é honesta, lança questões, sem a tentação das soluções.

Mas não foi apenas a sua aproximação que mudou. A música também. O piano e a instrumentação preferencialmente acústica que rodeavam a sua voz em álbuns como I Am A Bird Now (2005), que a deu a conhecer ao grande público, ou Cut The World (2012), o seu último de originais, foram aqui substituídos pelas electrónicas menos inteligíveis, resultado da colaboração com Hudson Mohawke e Oneohtrix Point Never.

Para quem acha que tinha entrado num universo circular nos últimos álbuns, é uma excelente notícia, com imaginativas camadas electrónicas sobrepondo-se por entre ritmos mínimos sugerindo representações ambientais abstractas, com a expressividade emocional da voz a respirar tanto melhor quanto mais esquelético é o edifício sónico que a envolve.

Na magnífica Crisis existe apenas um batimento rítmico ínfimo e algum enlevo orquestral, com a voz a impor-se naturalmente, numa alusão às torturas infligidas na prisão de Guantánamo (“If I torture your brother/ In Guantánamo/ I’m sorry”), enquanto a sensual Watch me nos leva a navegar numa onda electrónica ambiental e Drone bomb me é cantada a partir da perspectiva de uma rapariga afegã de sete anos que vê a sua família morrer, numa crítica velada às tácticas bélicas.

É um magnífico álbum onde Anohni mostra que é possível criar canções politicamente empenhadas que não resultam caricaturas, revelando-se personalidade inteira, densa e com convicções, falando sobre o nosso mundo. Às vezes sem conseguir traduzir a complexidade do mesmo — mas quem o consegue hoje? —, mas fazendo-o com grande generosidade e sentido de aventura, seja para inquietar ou para buscar a cumplicidade.

 

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