Deixem-se de merdas! Vai correr tudo bem com os Funk Connection

Não dá para entrar neste som e ficar encostado ao balcão só a ver o ambiente. Soul, Sweat & Cut the Crap, o segundo álbum do colectivo, é contra essa mania muito portuguesa de baixar a cabeça no final da festa. Falámos com Sylk, o mestre-de-cerimónias deste vulcão de soul, funk e gospel.

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A partir do momento em que Sylk entra em acção ninguém lhe fica indiferente FOTO: Alexandre Cabrita

Foi num concerto dos Cais Sodré Funk Connection. À minha frente uma mulher nos seus 30 e muitos, não especialmente bem tratada pela vida ou assim intuí, parecendo triste, descuidada, talvez com pouco tempo para si, com um vestido muito largo, o que lhe atribuía um ar desajeitado. De repente ouvem-se os primeiros acordes do palco e a mulher agarra no seu vestido, triunfante, e começa a rodopiar, ágil e elegante, metamorfoseando-se por completo, olhos fechados e amplo sorriso, entregue ao ritual da alegria. Suponho que a música serve para isto. Para nos transportar para um outro espaço e tempo. Para nos transcendermos. Para destapar por completo o que tendemos tantas vezes a ocultar.

“Acredito que a música cura, liberta e é redentora, mas tens de dar-te. Nos nossos concertos pensamos nessa espécie de transe, Na comunhão com o instrumento, com qualquer coisa que te transcende, com o público. É esse movimento que me interessa”, diz-nos Fernando Nobre, também conhecido por Sylk, mestre-de-cerimónias e cantor dos Cais Sodré Funk Connection (para além de actor de teatro e cinema), o colectivo que lançou há semanas o seu segundo álbum, Soul, Sweat & Cut the Crap.

Estranho caso, o deles. Toda a gente lhes reconhece qualidades únicas em Portugal, os concertos vibrantes, o conhecimento profundo da soul e funk, o contraponto feminino da voz de Tamin com os atributos de performer e as incarnações vulcânicas de Fernando. Mas depois o que se ouve da boca de muita gente é essa ideia de que se estivessem noutro país é que era. “Não imaginas as vezes que, no final dos concertos, nos vêm dizer isso: 'Eh pá!, o que é que estão a fazer aqui? Vão mas é para Londres ou para o Rio'”, ri-se Fernando. “Para isso é preciso uma estratégia e nós não a temos. Estamos a avaliar. É como se nos fizessem sentir estrangeiros, ao mesmo tempo que nos dizem que somos do mundo.”

Essa noção está tão enraizada talvez porque exista a consciência de que Portugal ainda é um país de cultura rock, sem grande tradição na absorção dos ensinamentos clássicos da soul e do funk dos anos 1960 e 1970, em parte o alimento espiritual da música dos Funk Connection. Outra hipótese é Portugal dar-se mal com música que exige a quem a ouve que se manifeste fisicamente. Não dá para entrar neste som e ficar encostado ao balcão só a ver o ambiente. Nem dá para nos entregarmos à melancolia. A sua atitude diz-nos: vocês podem ser felizes. E nem toda a gente está preparada para assumir essa responsabilidade.

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Os Cais Sodré Funk Connection são um colectivo XL: nove elementos FOTO: Alexandre Cabrita

É mais fácil arranjar uma desculpa para não o ser. “A força do fado, da melancolia, é tramada”, reflecte Fernando. “Há aqui um drama. Uma tensão, com o momento social a não ajudar em nada. Mas é mais do que isso. É também aquela coisa do 'só estou bem onde não estou'. Forma de boicotar a festa. No final da festa há sempre um baixar de cabeça. Um 'podia ter sido melhor'. Há sempre a comparação com o momento da festa ancestral. Uma insatisfação qualquer.” O que não significa, como é evidente, que os Cais Sodré Funk Connection estejam sempre em júbilo. Há lugar para tudo. “Tal como o palhaço pode ser muito triste, os tipos da festa também podem ser pessoas tristes que precisam da festa por isso mesmo.”

Como um culto

Uma das mais-valias do som dos Cais Sodré Funk Connection é a de criar facilmente familiaridade com o ouvinte, que ali reconhecerá traços de James Brown, Sly Stone, Etta James, Aretha Franklin ou Prince. Mas essa também pode ser a via para lhe ser apontada falta de singularidade, como se o gesto fosse apenas nostálgico. Nada que nomes como Amy Winehouse, Jamie Lidell, Aloe Blacc, Sharon Jones ou Antibalas não tenham ouvido na última década, desde que o vulcão soul foi reavivado.

O interessante nos Funk Connection é o facto de assumirem que encontrar uma voz singular – a sua voz – implica abraçar filiações. Começaram aliás com versões. Às vezes é apenas isso: existe uma fase para se ser como os outros apenas para melhor acedermos a nós próprios, descobrindo-nos nessa dinâmica mais complexos, inteiros e únicos. É como se aceitassem que a soul e o funk dos anos 60 e 70 não necessitam de ser desfigurados, mas podem ser recriados com paixão, mantendo as suas características nucleares. É assim que transformam cada canção num mundo seu.

Talvez seja menos evidente, mas existe uma outra influência que se sente na sua música: o gospel. Numa entrevista recente, o inglês Brian Eno, produtor, músico e uma das personagens mais relevantes da música dos nossos dias, foi convidado a justificar porque gostava tanto de gospel. Respondeu dizendo que existem momentos na nossa vida em que detemos o controlo das situações, mas também há alturas em que isso não é possível. Nessas circunstâncias tem de existir um outro tipo de relação com a realidade que envolve uma certa rendição, confiar nos outros, no sentido mais universal. A mensagem do gospel é: vai correr tudo bem. É uma mensagem fantástica, concluía ele.

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Fernando (Sylk) chegou a Portugal com dez anos, em 1981. “Cresci num bairro social da zona de Chelas, rodeado de barracas"

Fernando concorda. “O gospel teatraliza a vida. Sempre tive essa coisa do pregar aos peixes. É qualquer coisa que trago da igreja baptista, onde havia um espirito de fazer a festa e trazer a boa nova. Mudar a vida das pessoas através da música. Mas a festa tem conceito, há regras, os preliminares, o quebrar do gelo e da barreira entre músicos e público, formando uma espécie de congregação. É quase como se fosse um culto em que somos convidados a demonstrar a nossa confiança e a louvar.”

Os Funk Connection lançaram o primeiro álbum, You Are Somebody, em 2012, resultado das noites mensais que durante anos realizaram no MusicBox, ao Cais do Sodré, em Lisboa. “O primeiro álbum foi lançado um ano depois do início dessas residências”, recorda o vocalista. “Não foi nada de muito preparado. Fomos aos estúdios Namouche e gravamos tudo ao mesmo tempo. E depois voltamos para fazer mais uns instrumentos, mas sem grande elaboração porque queríamos a cena crua e totalmente funk.”

Agora, quatro anos depois, aí estão eles. Um hiato temporal justificado pelo facto de serem preguiçosos, revela Fernando entre risos. “Gostamos de fazer as coisas de forma lenta mas intensa. É tão bom!”, exclama. “Estas coisas da rapidez da Internet ou da obrigatoriedade de lançar discos com regularidade não são para nós. Cada música conta uma história pessoal e é preciso tempo para elas acontecerem. É o ritmo da vida. Somos carne para canhão para a nossa criatividade. As dores, as relações de fiasco, o nascimento de uma filha, a morte de um irmão, está tudo aí nesse disco.”

Essa é parte da verdade. Mas existe uma outra realidade. No fim de contas todos têm outros projectos e ocupações. “A esmagadora maioria dos músicos em Portugal tem de ter mais do que uma profissão, ou então quatro ou cinco projectos”, diz, enunciando que o baixista Francisco Rebelo dá aulas e faz parte dos Orelha Negra, o mesmo acontecendo com o teclista João Gomes, que também toca com Ana Moura, enquanto o guitarrista Tiago Santos é radialista e o saxofonista João Cabrita colabora com Legendary Tigerman. “Eu e a Tamin também desenvolvemos projectos a solo, enquanto o baterista Rui Alves toca com outros músicos e a secção de metais toca numa orquestra do exército. Temos todos de pagar a renda da casa.”  

São nove. Não deve ser fácil num contexto onde coabitam tantos músicos com longo percurso existirem consensos. Cada um deve ter uma ideia muito bem definida do que quer. “É verdade, mas essa experiência também serve para nos deixarmos ir”, afirma Fernando. “Às vezes construímos as músicas a partir do tecto e outras vezes a partir do chão. O processo criativo é caótico e pode ser desencadeado por qualquer um de nós.”

O primeiro álbum foi registado de um fôlego, tendo sido o guitarrista Tiago Santos a liderar em parte o processo. “Agora foi mais o João Cabrita em conjunto com o Francisco Rebelo”, reflecte Fernando, “mas cada um está sempre a tentar perceber qual a melhor forma de servir o projecto porque a liderança é partilhada por todos". "Por vezes há um que está mais inspirado e traz ideias para cima da mesa e vamos todos atrás. Mas existe muita discussão. Não é fácil, há choque. Compreendo muito bem porque é que muitas bandas acabam. Mas há respeito e confiança.”

Depois da fase em que tocavam os clássicos da soul e do funk, a coisa foi ficando mais séria. Um processo normal, diz Fernando. “O ideal romântico do artista que cria e compõe está em nós. Era natural que a partir de determinada altura começássemos a fazer as nossas coisas, porque havia material que funcionava bem a nível rítmico e melódico. E assim foi. Estávamos sempre a pensar no palco. O nosso cartão-de-visita é o som ao vivo. Mas a partir de determinada altura percebemos que tínhamos de gravar.”  

O palco é a praia deles, o estúdio é a piscina. “É menos salgado”, ri-se ele, “mas existe uma grande vibração dos instrumentos quando estamos juntos, por isso quando vamos para estúdio tocamos virados uns para os outros em contacto visual". "Estamos todos em comunhão à volta daquele momento. Não há efeitos. Não há truques. O que nos liga naquele instante é comemorar a liberdade. Somos uma banda de casamentos, baptizados e funerais. Gostamos dessa obrigatoriedade da celebração."

O tipo que agita

Quem já viu Fernando Nobre em palco com os Cais Sodré Funk Connection, ou na sua encarnação solitária como Sylk, nos mais diversos contextos – de galerias de arte a festas ao ar livre – sabe que fala a sério. A partir do momento em que entra em acção ninguém lhe fica indiferente. Nem que seja pela rejeição. “Essa coisa do one-man-show, do espalha-brasas, do tipo que agita e quer pôr as pessoas a dançar, trouxe-a de Moçambique, onde nasci. Sempre tive essa coisa de querer surpreender, fazer saltar uma emoção, mesmo que seja para me dizerem para os deixar em paz. Mas de repente tirei alguém daquele marasmo onde estava. Daquela cena dengosa de ver a vida a passar. Digo: 'Deixemo-nos de merdas! Vamos celebrar! Vai correr tudo bem!' E se por momentos contribuí para que aquela pessoa se afirmasse, seja para ir comigo, ou para me declinar, fico satisfeito.”

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“Às vezes construímos as músicas a partir do tecto e outras vezes a partir do chão. O processo criativo é caótico e pode ser desencadeado por qualquer um de nós”, afirma Fernando

Fernando chegou a Portugal com dez anos, em 1981, “apenas com a roupa que tinha no corpo”. A ideia da sua família era ficar provisoriamente. O pai trabalhava para o Estado português e foram ficando. Até hoje. “Cresci num bairro social da zona de Chelas, rodeado de barracas. No mesmo andar viviam pessoas de Ponte da Barca, de São Tomé e ciganos. Era um lugar com uma intensidade social incrível e comecei a pensar: qual é o meu lugar aqui? E agarrei-me ao funk e à soul. Era o que me fazia vibrar. E agarro também na cena da igreja e do gospel. Por outro lado, tinha aquela coisa da música africana, que é muito teatral e física, e desperto também para o teatro. Em parte por causa dos feiticeiros que em Moçambique vinham avisar que as aldeias iam ser bombardeadas, fazendo danças com máscaras. São coisas fortes. De alguma forma também me sinto como uma pessoa que está aqui para proteger e avisar.”

Ao mesmo tempo que fez o conservatório de cinema e teatro, foi-se envolvendo com a música. Os Shout, de Sara Tavares, os Funk Messengers ou os Mister Lizard. Pelo meio foi para Londres. “Fiz de tudo: tocar no metro, trabalhar numa cozinha, dar concertos, no fim de contas, sair da minha zona de conforto. Qualquer coisa mais punk do que funk, porque também sou punk. Gosto do meu mosh, apesar de ter sofisticado os meus trejeitos de dança e de não recusar um passo bem agarrado.”

No teatro diz que aprendeu a encher o palco – “Quando vou para palco com uma banda tenho as costas quentes, mas também sei fazê-lo sozinho” – e o cinema é uma das suas paixões. Fala de Blue Velvet, de David Lynch, The Blues Brothers, de John Landis, ou de Apocalypse Now de Coppola. “Todos  com grandes bandas-sonoras”, diz. “No fundo os Funk Connection queriam ser a banda-sonora do filme da nossa vida.” Recentemente, um dos videoclipes dos Funk Connection (Offbeat, realizado por Richard F. Coelho) foi premiado em diversos festivais. Uma surpresa. “O Richard tinha uma ideia e tudo foi acontecendo de forma orgânica, resultando numa coisa meio Wes Anderson, por quadros.”

Percebe-se que muitas das referências estão longe de se cingir à festividade. E ele sabe-o. O agente subversivo pode coabitar com o personagem trágico. No final dos concertos tanto lhe dá para se refugiar no quarto de hotel como para continuar noite adentro. “Por vezes o vazio instala-se e fico na minha ou procuro o conforto da minha família. Mas também posso sair para dançar até de manhã”, confessa. “O dar tudo gera desgaste e, depois, pode ser destrutivo. Foi por isso que deixei de beber há dois anos. O vazio que se segue pode ser perigoso até porque a indústria da noite pode dar-te as ilusões todas: das drogas ao álcool, às mulheres. É sedutor. E de repente decidi: quero ter uma vida intensa e longa, não quero passar pela chamada morte do artista”, ri-se.

Recentemente viu partir um dos seus heróis, Prince, mas diz que a morte não o assusta. “Não tenho medo dela, mas também não digo isto para a desafiar. Podem chamar-me idealista, ingénuo ou antiquado, mas eu acredito nessa coisa da música e da palavra que é capaz de erguer até os mortos.” Acredita na fé como acto íntimo, mas é incapaz de falar de Deus nos concertos. “As acções devem dizer mais do que as tuas palavras”, acaba por declarar, “é por isso que não tenho uma relação boa com quem está em lugares de poder: gente que diz e não faz. Mas com a morte tenho uma boa relação. A morte, para mim, é apenas mais um concerto.”

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