Renovar os compromissos na educação

A esquerda, que tem todas as condições para ganhar o debate sobre a liberdade de escolha, corre o risco de o perder se desvalorizar a importância de melhorar a qualidade da escola pública e de conquistar a confiança das famílias.

A questão da liberdade de escolha em educação entrou de novo no debate público, à boleia da negociação dos contratos de associação entre o Governo e algumas escolas privadas. Podemos continuar a debater aquela questão em termos abstratos, mas ganharíamos se mobilizássemos conhecimento e informação, em primeiro lugar, sobre os países onde foram concretizadas políticas de educação baseadas na liberdade de escolha em educação e, em segundo, sobre a trajetória das políticas de educação em Portugal.

1. A opção por políticas de educação baseadas no que se designou por liberdade de escolha foi ensaiada em países como o Reino Unido e a Suécia, tendo-se revelado desastrosa do ponto de vista da melhoria global da qualidade dos sistemas de ensino. Por essa razão, organismos internacionais como a OCDE, nos seus relatórios, recomendam prudência e alertam para os riscos. Atrever-me-ia a dizer que não há país do mundo em que os problemas da qualidade do ensino básico e secundário se tivessem resolvido com as políticas de liberdade de escolha. Pelo contrário, o que temos são sobretudo exemplos de países onde, com tais políticas, se aumentou tanto o insucesso como as desigualdades escolares.

Podemos perguntar-nos por que – apesar do insucesso prático de tais ideias, apesar dos alertas dos organismos internacionais –, a ideia da liberdade de escolha em educação faz o seu caminho e são tantos os que a defendem. Não vale a pena responder que são todos movidos por interesses egoístas, eventualmente obscuros e ilegítimos. Há, nesta opção política, interesses económicos dos muito liberais que não conseguem sobreviver no mercado sem uma renda do Estado. Há os interesses de algumas confissões religiosas que pretendem alargar a sua base de apoio através da educação. Há ideólogos de direita que acreditam que o mercado e os mecanismos de livre escolha na educação, por parte das famílias, são a solução para melhorar a qualidade da educação. Mas há também as famílias que, procurando o melhor para os seus filhos, acreditam que isso se encontra apenas em algumas escolas, mais nas privadas do que nas públicas, e que gostariam de poder escolher. Arrisco a dizer que são famílias de todas as classes sociais.

As perceções das famílias têm sido alimentadas por discursos e práticas desvalorizadoras da escola pública, por mecanismos como o ranking das escolas que permitiu a muitas privadas afinar os meios de selecionar os melhores alunos, bem como por políticas, como as do Governo anterior, de discriminação negativa das escolas públicas, com redução da sua autonomia e recursos. Mas resulta também do facto de termos um sistema de ensino muito desigual, como referi noutro artigo. Em Portugal, convivem, lado a lado, escolas excelentes, com elevada qualidade de ensino, e escolas com grandes níveis de insucesso escolar, que enfrentam grandes dificuldades e que não inspiram confiança às famílias. Diria que esta desigualdade, na qualidade de ensino, é o primeiro inimigo da escola pública. Elevar a qualidade de todas as escolas públicas é por isso indispensável para quem as quer defender, conquistando a confiança das famílias.

A esquerda, que tem todas as condições para ganhar o debate sobre a liberdade de escolha, corre o risco de o perder se desvalorizar a importância de melhorar a qualidade da escola pública e de conquistar a confiança das famílias, não apenas no discurso, não por decreto (ver Manuel Carvalho) mas, sobretudo, na ação.

2. A trajetória das políticas de educação na democracia condiciona hoje as nossas escolhas. Em 1976, ficaram consagrados na Constituição os dois principais fundamentos das políticas de educação, aprovados pelo PSD, PS e PCP:

– a garantia da liberdade de aprender e de ensinar e do direito de criação de escolas privadas e cooperativas (artigo 43.º);
– o direito universal ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e de êxito escolar, incumbindo ao Estado (a) assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito e (b) criar um sistema público de educação (artigo 74.º).

Neste enquadramento, a partir do pouco que existia antes do 25 de Abril, foi construído um sistema de educação público, democrático e gratuito. Formaram-se professores, construíram-se escolas, aprovaram-se programas e instrumentos de ensino, equiparam-se as escolas com pavilhões desportivos e com modernos meios tecnológicos, definiu-se um quadro regulatório progressivamente mais democrático, aberto à participação das famílias e das autarquias.

Pelo caminho, foram livremente criados colégios privados, com finalidades mais ou menos lucrativas, diversificando-se modalidades e experiências pedagógicas, absorvendo uma percentagem sempre reduzida do número total de alunos. O Estado foi celebrando com alguns dos colégios contratos de associação e contratos de outro tipo, no essencial para alargar o serviço público de educação a novas áreas. Foi o caso da educação pré-escolar, do ensino artístico e do ensino profissional, onde se constituíram sub-redes formadas maioritariamente por instituições privadas ou sociais. Hoje, porque a maior parte do serviço de educação é prestado por escolas públicas, os encargos do Estado com escolas privadas representam pouco no conjunto do orçamento do Ministério da Educação. Diria que, com a alteração do modelo de financiamento de 2010, é uma despesa reduzida e controlada, sobretudo quando se compara com outros sectores da intervenção pública, onde existem interesses instalados que beneficiam de rendas no valor de milhares de milhões de euros de transferências anuais do Estado.

Em resultado desta trajetória, assente em compromissos político-partidário que todos os ministros da Educação respeitaram, pelo menos até 2011, construiu-se um sistema de ensino maioritariamente público, gratuito e democrático, com o qual se fez um enorme progresso na qualificação das gerações mais jovens. Hoje, o número de alunos deixou de crescer, mas continuamos a ter importantes necessidades educativas, designadamente no pré-escolar, na educação de adultos e no acompanhamento dos jovens com percursos de insucesso escolar. Podemos olhar para o património que construímos na educação — escolas, professores e programas de ensino — como um problema ou como um recurso. Podemos olhar para o número de escolas e de professores e, tendo em conta apenas o número de alunos inscritos, dizer que são dispensáveis. Porém, se considerarmos, como aqui se disse, que continuamos a ter alunos a menos apesar da quebra demográfica, poderemos olhar para as escolas e para os professores como um importante recurso para enfrentar o futuro.  

O anterior Governo olhou para as escolas privadas como a tábua de salvação para os problemas da educação, acreditando que, introduzindo mecanismos de mercado, ficava dispensado de investir na qualidade da escola pública. Ao fazê-lo, rompeu o consenso construído ao longo de 40 anos, impondo uma visão ideológica muito particular e dispensando-se de construir novos compromissos com as forças partidárias à sua esquerda.

Agora é preciso fazer diferente. A esquerda não pode perder a oportunidade de promover a construção de compromissos políticos renovados nas políticas de educação, para que a alternância democrática não se transforme num faz e desfaz radical, com prejuízos elevados para o país. Compromissos para a elevação da qualidade da escola pública e para novas partilhas necessárias ao alargamento do serviço público de educação.

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