Um tricampeão feito de trás para a frente

Volvidos 39 anos, o Benfica repetiu a conquista de três campeonatos consecutivos, com um trajecto feito de alguma desconfiança, muitos riscos e uma segunda metade da temporada à prova de bala.

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Patrícia de Melo Moreira/AFP

Académica (3-1), V. Setúbal (2-1), União de Tomar (4-0), V. Setúbal novamente (3-0), Beira-Mar (4-0) e Nacional (4-1). O que têm estes clubes em comum? O facto de terem consagrado o Benfica como tricampeão nacional. Neste domingo, em Lisboa, os “encarnados” alcançaram o sexto “hat-trick” de títulos no seu historial, retomando um ciclo que havia sido quebrado há 39 anos. Foi uma longa viagem a do 35.º título, que começou em águas agitadas e que entrou em velocidade de cruzeiro a partir da segunda volta, a melhor das “águias” desde 1990-91.

Dificilmente alguém apostaria na revalidação do título quando, a 25 de Outubro, o campeão tombou como uma árvore desamparada em pleno Estádio da Luz, esmagado por um rival em crescendo e por um treinador que, num piscar de olhos, passara de herói a quase persona non grata entre os benfiquistas. Não foi só o resultado que pesou nessa derrota (0-3), imposta na 8.ª jornada. Foi a aparente impotência face ao Sporting de um Jorge Jesus que começara a aplicar em Alvalade a mesmíssima fórmula que, durante seis épocas, gerara sucesso do outro lado da Segunda Circular. Era um fantasma em movimento, um fantasma que já se tinha abatido sobre os “encarnados” no primeiro encontro da época, privando-os da conquista da Supertaça.

Por essa altura, eram sete os pontos que separavam o Benfica do primeiro lugar. E eram muitas as sobrancelhas que se arqueavam entre os adeptos quando se falava no nome de Rui Vitória. Até então, ao duplo desaire com os “leões” somavam-se outras três derrotas, frente ao Arouca, ao FC Porto e ao Galatasaray. Três socos no estômago que nem o surpreendente triunfo no Vicente Calderón, sobre um Atlético Madrid que nesta semana se qualificou para a final da Liga dos Campeões, foi capaz de aplacar.

Os recentes anos de sucesso dos “encarnados” tinham elevado as expectativas, dentro e fora do clube, mas o discurso era agora de mudança. Luís Filipe Vieira, um presidente que progressivamente se foi tornando mais discreto, há muito que começara a deixar o aviso à navegação: “Vamos ter de começar a rentabilizar o investimento no Caixa Futebol Campus”. Na prática, isto significava que o Benfica ia ter de mudar de agulha, ia passar a investir menos em reforços e a empurrar, desse modo, os jovens da formação para a primeira equipa.

Foi, de resto, este o argumento utilizado para não prolongar a ligação com Jorge Jesus, afectando créditos a Rui Vitória como um treinador vocacionado para a promoção de talentos emergentes. Depois de uma passagem bem sucedida pelo V. Guimarães, com um aproveitamento notável de jogadores da equipa B e de recém-chegados de escalões inferiores, o antigo responsável pelos juniores do Benfica entrava no Museu Cosme Damião, para a apresentação oficial, em Junho, como a promessa de um virar de página.

Com o plantel em fase de reformulação, Vitória chegou ao Seixal ainda com muitas incógnitas na cabeça e com um calendário de pré-época invulgarmente exigente. Integrado na International Champions Cup, o Benfica acabou sugado por uma competição que lhe rendeu três milhões de euros mas que teve uma pesada factura competitiva para saldar. Entre viagens para o Canadá, EUA e México, jogos consecutivos em regiões com altas temperaturas e adversários mais adiantados na preparação, as “águias” acumularam pouco mais do que desgaste e derrotas.

Foi neste contexto que o Benfica 2015-16 entrou nas provas oficiais. A meio-gás, com uma identidade diluída entre o que eram as ideias de Jorge Jesus e a visão de Rui Vitória, a equipa demorou a encontrar o caminho. E aquela deslocação a Braga, para a partida da 11.ª jornada, era já encarada como uma despedida precoce do campeonato em caso de nova contrariedade. Ao evitarem essa casca de banana, no entanto, os lisboetas ganharam fôlego, um número 8 indiscutível e começaram um ciclo de recuperação.

Nascia Renato Sanches para a elite do futebol e, com ele, a solução para o problema mais premente da equipa. Ter um médio todo-o-terreno, tão explosivo e vertical como o jovem de 18 anos, ainda que com muitas arestas para limar, era meio caminho andado para Rui Vitória estabilizar o “onze”. Pizzi passou definitivamente para o corredor direito, Gaitán manteve-se no esquerdo e Mitroglou passou a ser encarado como o parceiro ideal para Jonas. As peças do puzzle começavam a encaixar.

Essa foi uma das armas do Benfica nesta temporada, a estabilidade. A outra, não menos importante, foi a capacidade de improviso, de resolver problemas sem criar alarmismos cuidando de que as soluções fossem mais do que simples alternativas. Foi assim quando Luisão se lesionou, e mais tarde Nelson Semedo, e depois Lisandro, Júlio César ou Gaitán, cuja condição física foi sempre gerida com pinças. Foi assim que cresceram Lindelöf e Ederson, foi assim que ganharam solidez André Almeida e Carcela.

Rui Vitória, que cedo mostrara ao que vinha, com as apostas em Semedo, Gonçalo Guedes e Victor Andrade (até com Clésio, como lateral, pelo meio), dava sinais de competência no recato do laboratório do Seixal, onde preparou devidamente todo um plantel para o que desse e viesse. O treinador injectava princípios de jogo, organização e confiança, os jogadores devolviam empenho, comprometimento e qualidade.

Foi à custa de uma abordagem equilibrada ao jogo, feita muito à base de paciência e de confiança de que o golo acabaria por aparecer, que a equipa prosseguiu uma campanha sólida na Liga. Muitas vezes facilitada pela capacidade individual das unidades mais criativas (nomeadamente Jonas, Gaitán e Pizzi), mas também potenciada pela liberdade que lhes era dada no último terço do terreno, sempre com a preocupação de manter os equilíbrios defensivos.

A 20 de Dezembro, cinco dias depois de um inesperado empate na Madeira, frente ao União, o Benfica disparava para uma série de 11 vitórias, entre campeonato e Taça da Liga. Seguiu-se o segundo desaire com o FC Porto (1-2), em Fevereiro, e uma resposta à altura, com outros 13 triunfos consecutivos a nível interno, entrecortados apenas pelos quartos-de-final da Champions, dominados pelo Bayern.

Estava lançado o comboio do tricampeonato, que chegou à estação com o melhor ataque (88 golos) e a segunda melhor defesa (22) da prova. Estava lançado o sucessor dos trípticos alcançados em 1937-38, 1964-65, 1968-69, 1972-73 e 1976-77, época em que um dos titulados foi o então defesa Minervino Pietra, o único do actual elenco a repetir a proeza, agora como treinador adjunto.

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