O bairro onde ninguém queria entrar já "recebe mais visitas que os museus"

Depois do sucesso da intervenção no bairro da Quinta do Mocho, a Câmara Munincipal de Loures prepara um festival de arte com escultura, graffiti, fotografia, workshops e concertos e conta com a participação de artistas internacionais.

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Guilherme Marques
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Ninguém adivinhava a dimensão e popularidade que iria ganhar, mas a sua configuração arquitectónica parece ter sido construída com esse propósito. Com espaços públicos espaçados que permitem uma grande visibilidade à distância, os lotes da Quinta do Mocho são hoje telas da maior galeria de arte urbana a céu aberto da Europa. O sucesso da intervenção artística na Quinta do Mocho, conhecido como um dos bairros mais problemáticos de Sacavém, foi o mote de inspiração para a primeira edição do Loures Arte Pública, uma iniciativa da câmara que irá reunir cerca de uma centena de artistas.

Durante uma semana, de 18 a 26 de Junho, Loures abre novamente as portas à arte e convida-a a ficar. Entre escultura, graffiti e fotografia, são várias as intervenções que os artistas, portugueses e estrangeiros, são convidados a protagonizar. As peças serão, à semelhança das obras anteriores, feitas gratuitamente. Além disso, o festival convida à participação da comunidade e dos moradores, através de escolas e associações.

Com “mais visitantes do que a maioria dos museus”, acredita Bernardino Soares, presidente da Câmara de Loures, o bairro municipal encontrou na arte urbana “uma alavanca muito forte para a melhoria de uma série de condições em que vivia”

“Há uma mudança brutal. Antigamente era impensável que as pessoas que não fossem do bairro aqui entrassem”, começa por contar Kedy, um dos guias que nos conduz pelas ruas do bairro. Agora, todos os meses, o número de pessoas que visita o bairro da Quinta do Mocho ultrapassa as centenas. “Antes, os miúdos aqui dos bairros faziam rabiscos na parede. Agora já respeitam os espaços e aprendem que isto pode ser uma forma de mudar o mundo”, sublinha.

“Gerou um grande ambiente de protecção dos habitantes em relação ao seu espaço”, concorda o presidente da câmara. “Quanto melhores condições as pessoas tiverem no seu ambiente urbano, melhor tratarão as suas casas e os equipamentos municipais”, defende, o que se reflecte numa “melhoria no ambiente urbano, que antes era de degradação”.

Kedy vive no bairro há 14 anos. Conhece as ruas, vai cumprimentando as pessoas e sabe os nomes de cada comerciante. E é com esse sentimento de pertença que vai apresentando cada esquina. “Ali é o restaurante da dona Elsa. A comida é de excelente qualidade. Tem pratos africanos muito bons”. Um pouco mais à frente, fala do supermercado do senhor José, que funciona de acordo com os horários dos moradores do bairro. Durante o percurso, fala com paixão de cada uma das obras, sabe o nome de todos os autores e convida-nos a perdermo-nos entre as cores, formas e materiais tão diversos quanto a multiculturalidade que querem representar. Os temas não são alheios ao ambiente em que se inserem e as histórias viajam desde a independência da Guiné-Bissau à mais recente crise de refugiados.

Entre as mais de 50 obras que compõem a galeria, o presidente da câmara elege uma preferida. A de Nomen. Na imagem, uma mulher de traços africanos retira uma máscara de uma mulher branca, numa analogia à discriminação e estigma associado aos moradores do bairro. “Antigamente, as pessoas aqui da Quinta do Mocho, para sobreviverem lá fora, tinham de usar uma máscara. De esconder de onde vinham. A pintura simboliza isso mesmo. Só podiam tirar a máscara aqui”. Hoje, aquela que foi uma das primeiras intervenções no bairro, “pode estar um pouco desactualizada”, analisa o autarca. “Hoje há um orgulho imenso em se ser do bairro”, garante.

E é esse orgulho que o Loures Arte Pública quer expandir, aumentando também o tamanho da galeria. Clo Bougard é uma das novas artistas, que se junta a autores como Vhils, Tamara Alves, Bordalo II e Vespa. “Deram-me um edifício redondo: um reservatório de água”. Esta será a primeira obra que sai das paredes dos prédios. “Vai ser um desafio interessante, pela forma e pela altura”. O tema será, naturalmente, a água e é provável que tenha um rosto, a imagem de marca da artista. Ao PÚBLICO, Clo sublinha a importância da arte como “ponte de interacção” entre as comunidades. A propósito do festival, a artista destaca que “todas as faixas etárias podem participar e isso é muito bom para desenvolver sinergias entre as comunidades”.

Nuno Alecrim é outro dos artistas mas, ao contrário de Clo, ainda não decidiu o que vai desenhar. Mas é um entusiasta da iniciativa: “É um projecto interessante e engraçado, que dá visibilidade aos novos artistas”. “Portugal precisa de arte. De teatro, escultura, não só de arte urbana”, acredita. Já para Stélvia Zamora, conhecida como Moami, que coloriu o número 46 da galeria inspirada no tema multiculturalidade, o desafio não é uma novidade. E já está a preparar a obra à qual dará cor e forma no próximo mês. Desta vez, os seus traços reflectirão já a mudança que aponta no bairro que lhe é familiar. “Aprende a Amar e Não Vivas Sozinho” pretende retratar a alma rejuvenescida e a nova abertura do bairro.

“Os artistas têm tido um papel enorme. Às vezes chegamos a ser injustos, porque falamos tanto do bairro e esquecemo-nos dos artistas. O Vhils, por exemplo, quis especificamente intervir no bairro, apesar do convite da câmara para que usasse uma das paredes da Casa da Cultura de Sacavém”, conta o guia.

Também Maria Eugénia Coelho, vereadora da Acção Social da câmara de Loures tem acompanhado as visitas organizadas durante o último ano e aponta a evolução no ambiente e no dia-a-dia do bairro. "Permitiu retirar parte do estigma que o bairro tinha e contribuir para uma maior auto-estima dos habitantes, assim como para um muito maior respeito do resto da população em relação à Quinta do Mocho”. Este mês, a visita acontece no dia 28. Em Junho, a galeria já terá aumentado e a visita decorrerá durante o Loures Arte Pública.

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