América Latina desconfortável com o impeachment de Dilma

Vizinhos sul-americanos têm evitado pronunciar-se sobre o processo em curso no Brasil, excepto os porta-vozes do "eixo bolivariano" que denunciam o "golpe contra a democracia".

Foto
Dilma Rousseff entre os líderes das Américas na última cimeira, no Panamá, em Abril de 2015 REUTERS/Jonathan Ernst

Muito se tem especulado sobre uma nova tendência política na América Latina, onde estará em curso um movimento gradual de “troca” eleitoral de governos de esquerda e presidentes populistas por executivos conservadores conduzidos por personalidades menos impulsivas. Seria um novo “clube” regional teoricamente mais afável e tolerante para o novo Governo brasileiro liderado por Michel Temer, mas os líderes dos países vizinhos acompanharam o processo de impeachment desencadeado em Brasília com relativo desconforto: da direita à esquerda, ninguém aprecia o precedente aberto pelo Senado. Nem a insuspeita Organização dos Estados Americanos resistiu a manifestar a sua "preocupação" com os desenvolvimentos no Brasil.

A rival Argentina foi a primeira a reagir à suspensão de Dilma Rousseff e à posse de Michel Temer como Presidente interino do Brasil, numa nota oficial emitida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Diante dos factos registados no Brasil, o Governo da Argentina manifesta que respeita o processo institucional em curso e confia que o desenlace da situação consolide a solidez da democracia brasileira. O Governo argentino continuará a dialogar com as autoridades constituídas com o propósito de avançar com o processo de integração bilateral e regional”, diz o comunicado, assinado pela ministra Susana Malcorra.

A mensagem, diplomática e cortês, pode ser interpretada como um tímido respaldo ao novo Governo de Temer, mas está longe de poder ser considerado um apoio explícito. O Presidente Mauricio Macri até tem sido um dos aliados do Brasil neste processo, agindo como contrapeso ideológico perante os ataques cerrados de outros presidentes como Evo Morales (Bolívia) e Nicolás Maduro (Venezuela), que nos fóruns regionais e outros organismos multilaterais não se têm cansado de gritar “golpe” em apoio a Dilma.

Mas o líder argentino já por diversas vezes exprimiu o seu nervosismo e preocupação com o possível impacte dos acontecimentos brasileiros no seu país: Macri receia que um período de turbulência e instabilidade venha a alastrar além fronteiras. A sua atenção está concentrada nas possíveis consequências para a balança comercial – o Brasil é o maior parceiro comercial da Argentina – num contexto de ajuste económico e frágil recuperação.

Mas não só. Além disso, “o Governo argentino está inquieto porque teme que o executivo de Temer seja frágil e instável”, notava  El País, citando fontes que davam conta das reservas (veiculadas em privado) de Macri sobre a legitimidade política de um Governo não eleito e a idoneidade de um Presidente que é suspeito de corrupção. Sob pressão da rua, onde já se manifesta o descontentamento com a subida da taxa de inflação, o Presidente argentino sabe que o caso brasileiro dá força aos ataques do kirchnerismo contra a “vaga neoliberal” no continente.

Como observam vários analistas e comentadores políticos, o Brasil assumiu-se, sobretudo a partir da presidência de Lula da Silva, como o principal actor político da América Latina – é o país mais poderoso da América do Sul (só dois dos 12 países do continente, o Chile e o Equador, não fazem fronteira com o Brasil), com metade da população e 55% da actividade económica.

O seu papel de moderador era reconhecido por todos os líderes da região, independentemente das pequenas rivalidades internas: apesar de Dilma nunca ter sido capaz de replicar o carisma e a influência do seu antecessor, era ainda assim uma figura de referência em termos de projecção e representação internacional da posição sul-americana. No actual cenário de profunda crise política interna, nenhuma figura brasileira tem condições para desempenhar esse papel de interlocutor regional.

Enquanto os Presidentes da Argentina, do Chile ou da Colômbia têm optado por um tom mais neutro nas suas apreciações públicas e mantido uma certa discrição nas suas críticas ao processo de impeachment, já o chamado “eixo bolivariano” respondeu com estrondo às manobras para afastar Dilma, denunciando o “golpe contra a democracia” em curso no Brasil.

Mas há um outro espectro levantado pela crise brasileira e que deixa muitos dos vizinhos francamente nervosos: o das possíveis ondas de choque resultantes das revelações de investigações por corrupção ou crime organizado, ou das reacções a movimentos de protesto por causa da deterioração da qualidade de vida fruto da crise e recessão económica. Trocando por miúdos: do México, à Venezuela, ao Peru e ao Uruguai, os governos – de direita e esquerda – sabem que depois do que se passou no Brasil, aumentou substancialmente o risco de serem depostos antes do fim do mandato, com recurso a procedimentos constitucionais ou expedientes semelhantes.

Chefes de governo impopulares ou fragilizados temem que o precedente brasileiro sirva de inspiração aos seus adversários políticos ou movimentos de oposição domésticos. Na região, o braço de ferro entre o executivo e o legislativo, e a instabilidade política é mais a norma do que a excepção – são poucos os Governos apoiados por uma maioria sólida no parlamento. Os efeitos do impeachment de Dilma são totalmente imprevisíveis, mas vários analistas pensam que o instinto de sobrevivência e preservação política poderá falar mais alto e conduzir a reformas políticas apressadas e contraproducentes.

 

 

 

 

 

Sugerir correcção
Ler 6 comentários