Demonstrado em ratinhos que o Zika passa a placenta e danifica cérebro dos fetos

Dois estudos em animais provam que o vírus Zika passa da mãe para o feto, causando danos cerebrais. Infecção parece depender da capacidade imunitária dos ratinhos.

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Larvas do mosquitos Aedes aegypti num laboratório no Brasil Ueslei Marcelino/Reuters

Apesar de os Centros para o Controlo e a Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, sigla em inglês) terem declarado em Abril que o Zika é o responsável pela microcefalia nos recém-nascidos de mães infectadas por este vírus, ainda ninguém tinha demonstrado que ele atravessa, de facto, a barreira placentária. Agora, dois estudos inéditos vêm mostrar em modelos animais que o vírus é capaz de infectar o feto, podendo causar danos no cérebro e até matar os roedores. Os trabalhos foram publicados esta quarta-feira, por duas equipas independentes, nas edições online das revistas científicas Nature e Cell.

“O vírus Zika é suficiente para causar defeitos de nascença”, disse Jean Pierre Peron, investigador da Universidade de São Paulo (no Brasil) e um dos autores do trabalho na Nature, numa conferência de imprensa organizada por esta revista.

O Brasil tem sido um dos países mais afectados pela epidemia do Zika. Há 1271 casos de microcefalia ou malformações do sistema nervoso central associados à infecção pelo vírus naquele país, de acordo com o relatório de 5 de Maio da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a epidemia, que desde 2015 já atingiu 44 países. Só em 2015, pensa-se que o Brasil teve entre 400.000 e 1,3 milhões de infecções.

O Zika foi identificado pela primeira vez no Uganda, em 1947, e pertence ao género Flavivirus, tal como o vírus da febre-amarela e da dengue. É transmitido na picada do mosquito Aedes aegypti, que vive nos trópicos. Uma proporção alta das pessoas infectadas pelo Zika não tem sintomas. Mas a doença pode causar febre, dores, mal-estar e borbulhas e, nalguns casos, atacar o sistema nervoso periférico, afectando o controlo do movimento dos músculos (a síndrome de Guillain-Barré).

O papel do sistema imunitário

Nem todas as mulheres grávidas infectadas pelo vírus têm filhos com problemas. Uma das razões desta variação poderia dever-se a outro factor que ajudaria o Zika a atravessar a placenta. Os cientistas especulavam que o vírus da dengue, endémico no Brasil, poderia ser esse factor. Mas o estudo na Nature põe de parte esta hipótese e mostra, nos ratinhos, que o vírus sozinho consegue atravessar a barreira placentária, segundo os investigadores. O que poderá dificultar o salto do vírus para o feto é a resposta imunitária do hospedeiro, como já veremos.

A equipa, que contou também com cientistas da Universidade da Califórnia em São Diego (Estados Unidos) e do Instituto Pasteur do Dacar (Senegal), infectou fêmeas grávidas de duas estirpes de ratinhos diferentes com o vírus Zika isolado num doente do estado de Paraíba, no Nordeste do Brasil, em 2015.

Uma das estirpes de ratinho é conhecida por ter um sistema imunitário mais reactivo, a outra estirpe tem um sistema imunitário normal. Os recém-nascidos da estirpe de ratinho com um sistema imunitário normal mostraram sinais de microcefalia, como malformações na zona cortical do cérebro, e os cientistas encontraram aí material genético do vírus. Na outra estirpe, os ratinhos recém-nascidos eram normais.

“Os resultados indicam que o vírus Zika do Brasil atravessa a placenta e causa microcefalia ao infectar células progenitoras corticais, induzindo a morte celular e pondo em causa o neurodesenvolvimento”, concluem os cientistas no artigo, acrescentando que o modelo que usaram “pode servir para determinar a eficiência de terapias experimentais”.

A equipa fez outra experiência interessante, que pode ajudar a explicar a gravidade desta epidemia. Os cientistas infectaram minicérebros humanos desenvolvidos em laboratório com duas estirpes diferentes do vírus: a de 2015 do Brasil e a isolada em 1947, no Uganda, que é 90% semelhante a nível genético com a estirpe actual. A estirpe brasileira foi muito mais eficaz a infectar as células.

“A estirpe brasileira do vírus é mais agressiva do que a africana, mas não podemos excluir que a africana também causa a microcefalia”, explicou Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia, na conferência de imprensa. O vírus chegou ao Brasil pelas ilhas do Pacífico, vindo da Ásia. “As nossas descobertas apoiam a hipótese de que a microcefalia é uma característica distintiva da linhagem asiática do Zika”, lê-se, por seu lado, no artigo. No entanto, a equipa não teve acesso às estirpes africanas actuais. Não se conhece a origem do vírus Zika que provocou a epidemia em Cabo Verde no último ano, onde já se identificaram três bebés que nasceram com microcefalia, de acordo com a OMS.

O segundo artigo, publicado na Cell, tem várias semelhanças com o estudo na Nature. Desta vez, os cientistas da Faculdade de Medicina da Universidade de Washington (Estados Unidos) usaram uma estirpe do vírus isolada na Polinésia Francesa, em 2013. E infectaram com ele fêmeas grávidas de três tipos de ratinhos. Um grupo era normal, outro tinha sido modificado geneticamente para não produzir uma classe de interferões (moléculas que se ligam a corpos estranhos avisando o sistema imunitário para atacar esses corpos) e um terceiro grupo que não foi modificado geneticamente mas recebeu injecções de antigénios para bloquear estes interferões.

Os resultados mostram a importância do sistema imunitário. Os fetos dos ratinhos geneticamente modificados morreram por causa da infecção do vírus. Os poucos ratinhos que sobreviveram eram mais pequenos do que os recém-nascidos do grupo normal, além de terem o vírus Zika a replicar-se no cérebro. E os fetos das mães que tinham recebido antigénios tinham Zika, mas não morreram e apresentaram uma infecção menos grave.

Os cientistas analisaram as células infectadas pelo vírus. “Na maioria das vezes, a placenta é uma barreira eficaz entre a mãe e o feto”, diz Indira Mysorekar, uma das investigadoras responsáveis pelo trabalho, num comunicado da Cell. “Mas o Zika é capaz de ultrapassar essa barreira e ir progressivamente infectando diferentes camadas [celulares da placenta]. Vemos o vírus nos vasos sanguíneos do feto e na circulação e, pouco depois, vemos que se pode dirigir para o cérebro.”

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