Não às barrigas de aluguer

Neste momento, perante as enormes dúvidas e inquietações suscitadas, sou contra.

“[M]anter o mais alto respeito pela vida humana, desde sua conceção”, este foi o compromisso que assumi como médico. Sou, por isso, contra o projeto de lei que prevê a possibilidade de procriação por recurso à maternidade de substituição sob a forma de um negócio jurídico não oneroso.

Mas vamos por pontos, começando pela ética. Ignora-se, pura e simplesmente, a instrumentalização do corpo da mulher, atribui-se sem discussão superioridade ao laço genético sobre o laço afectivo de 9 meses de gestação e, ainda mais controverso, a criança é tratada como uma “coisa”, mero prolongamento do progenitor, argumento que não se ouve desde a escravatura.

No plano político, por sua vez, ignoram-se os limites da liberdade individual, seguindo-se uma via, que considero falaciosamente simples, de conversão de desejos em direitos. Numa sociedade onde as dificuldades de conceção se apresentam em crescendo e onde a vontade de ter filhos dificilmente deixa alguém indiferente, julgo que esta é uma discussão que deve ser feita com mais cautela.

No plano jurídico, estamos no quadro de uma prestação de serviços, onde o corpo humano passa a ser objeto de direito, confundindo-se liberdade de procriar, com direito de procriar. Mais, estamos perante um contrato de contornos muito imprecisos que prejudica os importantes princípios da certeza e da segurança jurídica, desconsiderando em particular os direitos da criança, da mulher portadora e da própria comunidade. Parece-me evidente que embora o feto exista dentro do corpo da mãe, ele não é património que se alugue, se doa ou se venda. E atenção, a generosidade invocada pelos proponentes é uma ilusão. Nos EUA, a mãe alojadora é tipicamente não licenciada, subsídio-dependente ou vive com um salário mínimo, em contraste com a mãe contratante que é tipicamente de alto rendimento e licenciada.

E não ficamos por aqui. A lei deixa em aberto muitas outras perguntas que têm de ter resposta, concorde-se ou não. O projeto prevê que possam ser pagos à mãe portadora todas as necessidades no âmbito da gravidez da parte dos progenitores. Como se controla? Como se resolve se a mãe portadora no final da gravidez quiser ficar com a criança? O que acontece à criança no caso de falecimento dos progenitores? E se os progenitores, por algum motivo (como, por exemplo, no caso de uma malformação congénita), não quiserem ficar com a criança? Como se resolve a conjugação da maternidade de substituição com a aplicação da lei da interrupção voluntária da gravidez? Pode o contrato jurídico ser renunciado a meio da gravidez (por exemplo, aos 6 meses de gestação)? Ou seja, no campo jurídico ignora-se tudo quanto pode correr mal.

Não podemos baixar os braços. Devemos ser coerentes na defesa da vida e da ética. Devemos defender de forma intransigente uma correta aplicação das leis em vigor – como são os casos das leis da Interrupção voluntária da gravidez e da Procriação Medicamente Assistida. Devemos apoiar medidas de promoção da natalidade, reconhecendo que existem barreiras financeiras, sociais e profissionais à procriação, assim como de clarificação dos processos de adoção, numa visão que deve ser não apenas individual, mas também global perante a preocupante situação demográfica e social do país.

Especificamente quanto à maternidade de substituição, o projeto pode ter o mérito de lançar um debate que ainda está por se realizar no seio da sociedade portuguesa. Neste momento, perante as enormes dúvidas e inquietações suscitadas, sou contra.

Médico, Professor Universitário e Deputado do PSD

 

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