Vida assistida: duas crenças
Que direito moral tem o direito legal de limitar o meu direito visceral a dispor da minha própria vida?
Crença n.º 1 – O Paraíso existe e está ao alcance de todos
Pessoalmente, vejo a noção de Paraíso como uma forma de lidar com a morte.
Um grande professor disse-me, em tempos, “Morrer deve ser muito fácil, não acha? Repare: toda a gente faz!!!”
Infelizmente – e ele sabia-o bem! –, as coisas não são assim tão fáceis! Morrer é, talvez, a tarefa mais desafiante e/ou intimidante que um ser humano tem pela frente, ao longo da sua vida!
O Paraíso representa, para mim, uma das invenções mais geniais que a Humanidade alguma vez produziu! Ajuda pessoas a “superar” a morte, através da ilusão de que a vida continua, mesmo depois de morrerem. Conceito inteligentíssimo, útil e, até hoje, nunca objeto de prova contrária! Mas também verdadeira armadilha para outros, já que representa o ponto de partida para aceitarem todo o tipo de religiões, cultos, e/ou submissões não raro humilhantes, face a quem lhes dita como devem comportar-se na vida terrena, com vista a merecerem, mais tarde, aceder ao Céu!
Crença n.º 2 – A vida é uma dádiva de Deus
Diretamente associada à crença nº 1. De acordo com esta segunda crença, o ato de que todos nascemos (e sobre o qual não fomos sequer ouvidos, como bem refere António Aleixo!) não representa senão a materialização terrena de uma realidade bem mais complexa e transcendente: a nossa vida não nos pertence, veio de Deus e a Deus retornará, quando Ele entender chamar-nos de novo.
Sou franco: no dia em que a saúde me faltar, acho que vou sentir-me doente!!!
Se esse dia trouxer dor que me destrua esta alegria de viver, espero ter a coragem de não impor o meu sofrimento a outros, ou sequer a mim próprio!
Nasci em Coimbra. Toda a minha infância foi vivida em ambiente profundamente católico. A minha família, que adoro, é quase exclusivamente católica. Tenho grandes amigos católicos.
Porém, viajar pelo mundo deu-me a consciência de que, se tivesse nascido em Bagdade, o meu universo afetivo seria, por certo, maioritariamente muçulmano. Hindu, se natural de Bombaim…
Vi também que a História nos relata – e a televisão nos mostra – inúmeras guerras, em grande parte de origem religiosa. É fácil perder-se a tolerância, quando surge a tentação de dominar o outro, usando como argumento a crença nº 1!
O mundo foi aprendendo as lições da História: são hoje muitos os estados que entenderam já onde se localiza o cerne de uma paz tolerante: na adoção de uma constituição laica. Essa base fundamental viabiliza e salvaguarda o respeito por todas as crenças religiosas, incluindo a ausência de crença!
Portugal beneficia, felizmente, de uma constituição laica. Mas o ascendente católico é ainda forte e a pressão faz-se sentir. Baseadas na tradição, muitas pessoas continuam mesmo a pensar que o catolicismo é a religião oficial do estado português. Não é! Porém, por vezes parece, de facto!
Em particular, ajudar uma pessoa, a seu pedido, a parar de vez com o sofrimento que sente como insuportável e irreversível, é ainda considerado crime! O termo “eutanásia” – designação técnica de morte assistida – é tradicionalmente encarado com carga altamente pejorativa, um pouco como se de assassinato se tratasse!
Debate-se hoje, entre nós, a possível despenalização da morte assistida. Tendo por base (mais ou menos frontalmente assumida…) o que acima designei por “crença nº2”, a pressão católica será fortíssima, ao longo de todo o período de reflexão.
Seja-me permitido um testemunho visceral: o meu corpo, a minha consciência e a minha vida são os três únicos valores que possuo como intrinsecamente meus: tudo o resto posso comprar, vender ou trocar!
Pergunto então: que direito moral tem o direito legal de limitar o meu direito visceral a dispor da minha própria vida?
Que outros queiram prescindir desse direito em relação a si próprios, eu entendo e respeito. Mas que pretendam impor-me uma vida assistida, assente na dor, no sofrimento, na humilhação, na negação do que terei sido até esse momento, tudo por rejeição do meu direito a solicitar, com dignidade, que alguém me ajude a deixar de sofrer e de fazer sofrer, isso não aceito, nunca aceitarei!
Por caridade, haja Deus!!!
Professor aposentado da Universidade de Coimbra
(por enquanto vivíssimo, e feliz por saborear cada instante que passa!)