Geringonça? Seis meses mostram que mais vale pouco que nada

A esquerda uniu-se para afastar a direita numa solução inédita. Foram precisas cedências de todos os partidos, mas, apesar das divergências, PS, BE, PCP e PEV querem continuar a acreditar no que os une. O próximo grande desafio é o orçamento de 2017, mas dificuldades deverão aumentar com o tempo.

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Orçamento de Estado de 2016 foi aprovado por correlação de forças inédita Nuno Ferreira Santos

Prestes a fazer seis meses sobre a assinatura dos compromissos políticos entre PS, BE, PCP e PEV que permitiram um acordo inédito no país e o apoio parlamentar a um Governo socialista que não ganhou eleições, a “geringonça” funciona a várias velocidades. É mais ágil numas matérias do que noutras, tem servido para unir a esquerda com o intuito principal de derrotar a direita, e leva os partidos à esquerda do PS a preferirem aceitar pouco do que a terem nada. Mas BE, PCP e PEV mantêm a sua agenda, muitas vezes numa posição de desafio ao PS, para contentar o seu eleitorado. Todos argumentam que os acordos não pressupõem a sua anulação como partidos autónomos.

As posições conjuntas sobre “solução política” foram negociadas e assinadas sem pompa, à vez com Bloco, PCP e PEV, e à porta fechada numa sala da Assembleia da República a 10 de Novembro, à hora do almoço, poucas horas antes do chumbo do programa do Governo PSD/CDS. Passado todo este tempo, os partidos preferem realçar a “dignidade” que o seu conteúdo trouxe à vida dos portugueses do que discutir questões formais sobre a forma como se relacionam no dia-a-dia e como conseguem uns dos outros cedências para esta ou aquela medida.

O primeiro semestre desta solução inovadora — que Espanha, a braços com uma crise política idêntica, até tentou replicar mas sem sucesso — mostra que “sim, é possível”, arrisca-se a dizer o comunista João Oliveira. E retoma a expressão que agora poucas vezes se houve nas intervenções do partido na Assembleia da República, a da “política alternativa, patriótica e de esquerda”, embora para chegar aí ainda falte muito, acrescenta. Já houve reversões nos cortes de salários e pensões, na sobretaxa do IRS e nos feriados, aumentou-se o salário mínimo nacional — as questões da restituição dos rendimentos do trabalho foram precisamente a base que uniu a esquerda. A estas medidas somam-se a reversão de concessões a privados nas áreas da saúde e transportes, e algumas questões de direitos e liberdade individuais como o aborto e a adopção plena, descreve ao PÚBLICO Catarina Martins.

A estratégia subjacente às posições políticas conjuntas era simples: subscrever aquilo em que estão de acordo, deixar de fora as divergências. No campo destas últimas, algumas são, no entanto, colocadas à mesa nas conversas que os partidos vão mantendo, como é o caso da dívida, que PCP e Bloco querem renegociar e o Governo só pondera discutir quando o assunto for colocado a nível europeu, como o ministro das Finanças já admitiu, soprado pelo primeiro-ministro, num debate no Parlamento.

A dúvida da dívida

De simples há seis meses, essa estratégia acaba por continuar a colocar pedras no caminho. A moção da porta-voz do Bloco, Catarina Martins, e do líder parlamentar, Pedro Filipe Soares, à convenção do partido no final de Junho, defende que “só é possível salvar o Estado social, relançar o investimento e criar mais emprego rejeitando a chantagem da dívida, renegociando-a de forma profunda e assumindo o controlo público da banca”. Precisamente o mesmo que defende o PCP. O Novo Banco, por exemplo, ameaça ser uma pedra na engrenagem. Os comunistas têm insistido em apresentar propostas para a nacionalização da banca, o Bloco prefere ver o banco que derivou do BES nas mãos do Estado depois dos mais de 4 mil milhões ali injectados — e António Costa só responde que a decisão será a que ele achar que melhor defende os interesses dos contribuintes.

Mas o Novo Banco e o sistema financeiro em geral podem trazer problemas. Se for necessário mais dinheiro público para, directa ou indirectamente, capitalizar a banca, isso pode pôr em causa a recuperação de rendimentos garantida à esquerda como moeda de troca para o apoio parlamentar — e esse é um receio assumido pela porta-voz do Bloco.

Quando se pede um balanço destes seis meses, os quatro partidos são unânimes: é positivo, serviu para inverter o ciclo de empobrecimento e para iniciar a recuperação de rendimentos, alargou a capacidade de diálogo, revela o “amadurecimento da democracia”. Todos dizem estar a “cumprir a sua parte”. E enquanto o Governo de António Costa cumprir a sua, cada partido promete que não será por si que o compromisso será quebrado. O ónus está, portanto, do lado do executivo.

O socialista João Galamba rejeita que haja uma “responsabilidade ou um sacrifício maior” do PS. “Todos os que participam nos acordos sacrificaram coisas em busca de um bem maior. Todos os partidos têm um compromisso e isso implica que tenham que reconhecer que não podem cumprir o seu programa eleitoral integralmente.” De fora dos acordos ficaram as questões europeias por absolta impossibilidade de se colocarem de acordo. PCP e BE exigem que Portugal se liberte dos constrangimentos europeus; o PS é europeísta convicto. E foi por causa de Bruxelas que a geringonça andou um pouco torta em algumas ocasiões.

Logo em Dezembro, BE, PCP e PEV votaram contra a redução da Contribuição Extraordinária de Solidariedade para metade em 2016 por quererem acabar com ela. Foi aprovada por PS, PSD e CDS. Uma semana depois, por causa do Banif, vendido ao Santander depois da pressão de Bruxelas, a esquerda virou as costas ao PS na votação do orçamento rectificativo que acomodou a injecção pública no banco. Foi viabilizado, coerentemente, pelo PSD. Em Fevereiro, quando o Governo negociou com Bruxelas o draft do orçamento, os partidos da esquerda exigiram uma posição de força de Costa contra os limites do défice e da dívida impostos pela União Europeia.

“Enquanto for possível compatibilizar o compromisso do PS com o vínculo europeu não há nenhum problema em termos entendimentos diferentes”, desdramatiza João Galamba. E quando isso não for possível?

O socialista Eurico Brilhante Dias, crítico do compromisso do PS à esquerda, admite que se conseguiram “ultrapassar obstáculos importantes” até com alguma ajuda indirecta da direita que, ao acossar BE e PCP, ajudou a reforçar a coesão da geringonça. Mas é precisamente no enquadramento político face à conjuntura europeia que prevê problemas para a pseudo-coligação. Brilhante Dias diz que o sucesso da geringonça a longo prazo está dependente do caminho que a UE tomar — se for o de uma maior integração, então o PS estará em maus lençóis para conseguir responder em simultâneo aos compromissos internos com os seus apoiantes e aos compromissos europeus.

Ainda na contagem dos solavancos da geringonça, que a direita tem tentado explorar sempre que pode, entra o Orçamento do Estado deste ano. Os três partidos não se cansaram de apregoar que aquele não era o seu orçamento, que se devia ir bem mais longe, mas votaram-no a favor e aplaudiram de pé. Porquê? Porque mais vale pouco do que nada. Foi esse também o argumento para contrariarem exigências dos seus programas eleitorais como por exemplo o salário mínimo nos 600 euros já este ano ou a eliminação de portagens, mas aprovarem a subida do primeiro para 530 euros e, ainda ontem, a recomendação do PS ao Governo para reduzir o valor das portagens. BE e PCP também criticaram o Programa de Estabilidade e o Programa Nacional de Reformas mas uniram-se para rejeitar o seu chumbo, proposto pelo CDS-PP que tentou assim, sem sucesso, desconjuntar a geringonça.

Olhando para a atitude do BE, PCP e PEV nos debates no Parlamento ou para a estratégia da sua agenda política, estes têm muitas vezes parecido uns soldadinhos desalinhados mas que rapidamente se colocam em formatura de defesa quando o exército da direita dispara. Mas não se sentem coarctados na sua independência e agenda política. E nas negociações com o PS há reflexão, discussão mas não imposição, diz João Oliveira que recusa “falsos consensos e unanimismos bacocos” como os da direita e defende a “coerência” do PCP.

“É espantoso e até miraculoso, mas tem acontecido, e a lição que estes quatro partidos têm dado ao país é que são possíveis apoios que não impliquem unanimidade nem fusão nem diluição da posição de cada um. Conservam a autonomia e as políticas estratégicas próprias mas conseguem chegar a compromissos construtivos”, diz João Galamba quando questionado se tem sido difícil conciliar vontades, estratégias tão diferentes como as do PCP, mais ortodoxo, e do BE, mais irreverente.

O antigo dirigente do PCP Carlos Brito, que integra agora a Renovação Comunista, considera que estes seis meses “confirmaram as possibilidades de entendimento que se vislumbravam no início”. Tem sido um caminho “não isento de dificuldades”, mas que têm “sido superadas”, conseguindo dar ao país “uma certa estabilidade”. Mas avisa: “Não basta esta solução governativa sustentar-se nisto. Fez-se alguma recuperação de rendimentos; agora tem que ter ambição de dar solução aos problemas nacionais, conseguindo progresso e desenvolvimento económico.”

Geringonça e caranguejola

O termo geringonça, usado por Vasco Pulido Valente no PÚBLICO para definir o PS no Verão quente de 2014 das lutas entre António Costa e António José Seguro, haveria de ser repescado por Paulo Portas no seu discurso durante o debate em que a esquerda chumbou o Governo PSD/CDS — aliás, no momento em os líderes das bancadas do PS, BE, PCP e PEV subiram à vez as escadas até à mesa de Ferro Rodrigues para deixar as suas moções de rejeição. E não mais se descolou da esquerda. Foi Carlos César quem, no debate da votação final global do orçamento, a meio de Março, usou resposta parecida para a direita — a “caranguejola”, adoptando o termo também já usado pelo mesmo Vasco Pulico Valente para descrever a dupla Passos e Portas, em Maio de 2014. Mas a geringonça é mais falada. Até António Costa usa o termo: “Sim, sim, é geringonça mas funciona”, atirou há uma semana à oposição.

Pedro Nuno Santos, o pivot do PS nas negociações pré-acordos, assumiu naturalmente a pasta de secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, tornando-se o elo fundamental da ligação à esquerda nestes meses. Admite ser dos poucos que não gostam do termo e considera que “já ninguém tem dúvidas: esta solução de geringonça não tem nada”.

“Terminámos aqui um ciclo: formação de Governo, OE, Programa de Estabilidade e Programa Nacional de Reformas”, baliza Pedro Nuno Santos. O patamar seguinte é o orçamento de 2017, que tem promessas que ficaram penduradas do de 2016 e já está a ser discutido com os parceiros dos acordos. Os grupos de trabalho com o Bloco e as reuniões semanais com o PCP e PEV estão já nesse compasso.

Mas há ainda muito por fazer nas áreas fiscais, da saúde, da educação. Catarina Martins diz que é preciso apostar nos serviços públicos, reintegrar precários, apostar na Cultura. João Oliveira acredita que era possível ir mais longe nos rendimentos e aponta a questão das pensões.

Mas ninguém quer falar de revisão dos acordos. Prefere-se falar sobre o que proporcionaram os que existem, e que já não é pouco. “A democracia portuguesa hoje está mais rica, pela primeira vez a esquerda está a trabalhar em conjunto. Num quadro de restrições, que o PS quer respeitar, conseguiu-se uma viragem importante”, aponta Pedro Nuno Santos.

Arrependimento é coisa que não existirá à esquerda. “Não sei se em política temos espaço para arrependimento”, diz João Oliveira. “Temos espaço para errar e aprender com as boas decisões. O pior arrependimento era não aproveitar todas as potencialidades de um novo cenário.”

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