Esta segunda-feira podemos ver Mercúrio passar à frente do Sol

Desde 2003 que não havia um trânsito de Mercúrio pelo disco solar observável em Portugal. O fenómeno durará sete horas e meia e só pode ser visto com telescópios. Há actividades preparadas em vários pontos do país.

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Sequência de imagens do trânsito de Mercúrio de 2003, obtida pelo satélite SOHO ESA/NASA
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O trânsito de Mercúrio de 2006 O planeta é um pontinho situado na parte de baixo do disco solar TheBrockenInAGlory

O planeta mais perto do Sol será o centro das atenções nesta segunda-feira. Entre as 12h12 e as 19h40 (hora de Lisboa), Mercúrio vai atravessar-se à frente do Sol, naquilo a que se chama um trânsito solar. É um fenómeno raro. O último trânsito de Mercúrio foi em Novembro de 2006, mas a geografia de Portugal não estava alinhada com a astronomia e a passagem ocorreu durante a nossa noite. É preciso recuar até Maio de 2003, há 13 anos, para termos tido um trânsito visível no nosso país. Amanhã, a única coisa que pode estragar o acontecimento são as nuvens, já que o Instituto Português do Mar e da Atmosfera prevê aguaceiros para todo o país.

Quem quiser ver o fenómeno terá de se dirigir a um dos vários locais preparados com telescópios. “Vê-se o disco solar – branco-azulado ou amarelado, dependendo do filtro – e em cima do disco vê-se um pontinho”, diz ao PÚBLICO o astrofísico Rui Agostinho, director do Observatório Astronómico de Lisboa, referindo-se a Mercúrio. “Supondo que está bom tempo e o Sol desponta por cima deste véu de nuvens”, ressalva, rindo-se dos infortúnios que a meteorologia pode trazer.

A partir da Terra, Mercúrio surge 158 vezes mais pequeno do que o Sol. É um ponto minúsculo no meio daquela bola de energia. Por isso, não vale a pena ir buscar os óculos especiais usados no último eclipse do Sol, que impedem grande parte da radiação solar de chegar à retina e de a danificarem. Muito pior será a ideia de olhar directamente para o Sol. Como o planeta é muito pequenino, é impossível ver o trânsito a olho nu.

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Mas pelo telescópio é possível confirmar-se uma lei astronómica que enunciamos de cor. “Ouvimos desde pequeninos que os planetas giram à volta do Sol, mas nunca os vemos. Aqui, nota-se verdadeiramente o movimento de Mercúrio à frente do Sol: é fantástico!”, sublinha o astrofísico Nuno Peixinho, do Observatório Astronómico de Coimbra.

Além de Mercúrio, só Vénus é que nos oferece trânsitos solares. Os outros planetas do nosso sistema estão mais longe do Sol do que a Terra, por isso nunca se atravessam entre nós e o Sol. Mas é possível observar os trânsitos das luas de Júpiter e de Saturno quando estas passam à frente dos seus planetas.

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Várias luas de Saturno em trânsito no planeta. Titã está à direita e tem uma cor laranja NASA/ESA

Fora do nosso sistema solar, a observação de trânsitos tem sido uma técnica importante para detectar planetas extra-solares, que orbitam outras estrelas. Neste caso, as minúsculas quebras cíclicas da luz de estrelas que chega até nós denunciam aos astrónomos a existência de planetas a girarem à volta delas.

Por cá, o último trânsito solar de Vénus, em 2012, também serviu para fazer ciência. Em Portugal não foi possível observar o fenómeno. Mas a missão internacional Venus Twilight Experiment levou vários cientistas a nove locais no mundo para ver Vénus com um telescópio especialmente concebido para estas observações, o coronógrafo. O objectivo era analisar a atmosfera venusiana através da luz do Sol que a atravessa e chega à Terra. Os astrofísicos portugueses Pedro Machado e João Retrê, ambos do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço, fizeram parte da missão e foram destacados para o Observatório de Udaipur, no Noroeste da Índia.

Nesta segunda-feira, quem for ao Planetário Calouste Gulbenkian, em Lisboa, poderá observar o trânsito de Mercúrio com o mesmo coronógrafo que os cientistas portugueses usaram na Índia em 2012. O coronógrafo tem um cone ocultor situado lateralmente no campo de visão do telescópio. Este cone “serve para observar a auréola iluminada da atmosfera de Vénus quando ela ‘toca’ no Sol [na altura em que o planeta começa o trânsito] e quando o planeta sai do Sol”, explica Pedro Machado.

Para saber mais sobre esta experiência de 2012 – que só poderá ser repetida em 2117, quando ocorrer o próximo trânsito de Vénus –, existe um documentário sobre a Venus Twilight Experiment, realizado pelo astrofísico Maarten Roos, que vai passar na segunda-feira, às 21h30, no planetário em Belém. Legendado em português, é a primeira vez que é exibido em Portugal. Mas também está disponível no YouTube.

Em Lisboa, haverá também telescópios para observar o trânsito de Mercúrio na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. O objectivo da experiência não é passar as sete horas e meia a olhar para Mercúrio, explica Rui Agostinho. “As pessoas vêm, aproximam-se, espreitam pelo telescópio e depois vão à sua vida. Podem voltar mais tarde”, sugere.

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O fenómeno também será seguido noutros locais: no Observatório Geofísico e Astronómico da Universidade de Coimbra; no Planetário do Porto e na Praça de Gomes Teixeira, em frente à reitoria da Universidade do Porto; no Centro Ciência Viva de Constância; no Centro Ciência Viva de Lagos; ou no Centro Ciência Viva do Algarve, em Faro. No Planetário do Porto, haverá ainda uma pequena sessão dedicada ao trânsito de Mercúrio, que será repetida várias vezes e comentada de hora a hora, a partir das 13h. Haverá ainda uma conversa às 18h sobre a importância dos trânsitos na procura de planetas extra-solares.  

Nos arquipélagos, será possível observar o trânsito no Observatório Astronómico de Santana, em São Miguel, nos Açores, e no Funchal, onde a Associação de Astrónomos Amadores da Madeira vai estar na Escola Secundária João Gonçalves Zarco com telescópios.

Todos os telescópios terão de ter um filtro contra o sol. “Apontar um telescópio para o Sol sem filtro é cegueira certa”, alerta o astrofísico Daniel Folha, director-executivo do Planetário do Porto. A luz solar que atinge a lente do telescópio é toda concentrada na ocular, onde se põe o olho. Sem um filtro, esta energia concentrada queima a retina. Por isso, quem usar telescópios em casa para observar Mercúrio terá de usar um filtro. A alternativa é projectar a imagem que vem do telescópio numa parede à sombra, sugere ainda Rui Agostinho.

No território continental, o fenómeno começará às 12h12 e terminará às 19h40, com variações de minutos de Leste a Oeste. Na Madeira inicia-se um pouco antes, às 11h54, e acaba às 19h26. Em São Miguel dura entre as 11h13 e as 18h40 locais. Nestas sete horas e meia, quem seguir o movimento de Mercúrio irá ver o planeta a “entrar” no Sol do lado esquerdo, abaixo do centro da estrela. Depois, Mercúrio irá subir numa curva até ao meio do Sol para de seguida começar a descer a pique até desaparecer em baixo, desenhando uma espécie de “u” de cabeça para baixo. Este desenho não traduz a realidade da órbita do planeta, mas é o resultado do próprio movimento rotacional da Terra. Se alguém estivesse a seguir o trânsito no espaço, veria Mercúrio a atravessar o Sol de um lado ao outro.

Planeta pouco visitado

A primeira pessoa a observar o trânsito solar de Mercúrio foi o astrónomo francês Pierre Gassendi, em 1631. Se hoje este fenómeno já não traz novidades científicas – ao contrário das observações do trânsito de Vénus –, no passado o trânsito destes dois planetas ajudou a calcular a distância média entre o Sol e a Terra, de 150 milhões de quilómetros. Mercúrio está a uma distância média de 58 milhões de quilómetros do Sol.

Por século, há apenas 13 ou 14 trânsitos solares de Mercúrio, apesar de o planeta, com a sua órbita de 88 dias, passar duas vezes por ano entre a Terra e o Sol. Mas como a órbita de Mercúrio é inclinada em relação à órbita da Terra, são raras as vezes em que o planeta fica exactamente entre a Terra e o Sol.

Os próximos dois trânsitos solares de Mercúrio serão em 2019 e em 2032. Antes disso, o pequeno planeta será notícia de novo. Em Abril de 2018, uma missão conjunta da Agência Espacial Europeia e da Agência Japonesa de Exploração Aeroespacial, a BepiColombo, partirá com duas sondas em direcção a Mercúrio. Só entrarão em órbita do planeta em 2024. Uma irá estudar a topografia e o interior de Mercúrio, a outra dedicar-se-á a analisar a sua magnetosfera.

Esta será apenas a terceira missão a Mercúrio, as outras duas foram da NASA: a Mariner 10, que em 1974 e 1975 passou junto do planeta, e a Messenger, que chegou lá em 2011 e se despenhou de propósito em Mercúrio no ano passado. Em retrospectiva, apesar de estar próximo, aquele cantinho do cosmos tem sido pouco visitado. Por isso, seguindo uma tradição com quase 400 anos desde o primeiro trânsito de Mercúrio observado, na segunda-feira poderá ser uma nova oportunidade para assistir a este espectáculo. E, dessa forma, aproximar-nos dos movimentos que ocorrem no nosso sistema solar – cíclicos e silenciosos, quer haja nuvens ou não.

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