Tinha nome de anjo e encheu-nos as ruas de cor

Foto
O painel de azulejos da Pastelaria Mexicana é uma das melhores obras de Querubim Lapa PEDRO CUNHA/ARQUIVO

A sua obra espalha-se pelas ruas de Lisboa. Todos os lisboetas, todos os turistas que alguma vez desceram o Chiado cruzaram-se, pelo menos, com um dos seus painéis de azulejo. Talvez o da Casa da Sorte. Talvez o da avenida 24 de Julho. Alguns não saberão o nome do artista que assim enchia as ruas de cor, dando continuidade a uma longuíssima tradição portuguesa com mais de 500 anos.

Querubim Lapa, o autor desses painéis, morreu nesta segunda-feira aos 90 anos. Pertenceu a uma das gerações modernistas que tinha como norma a exigência nada fácil de permanente renovação. Como Júlio Pomar, por exemplo, seu contemporâneo, manteve-se atento a novas linguagens formais que a arte internacional ia desenvolvendo entre as décadas de 50 e 70, sem que tenha abandonado jamais definitivamente qualquer uma delas. Uma figuração abstractizante na década de 50, por exemplo,  poderá preceder um estilo mais formalista nos anos 80, ou mesmo algum fascínio pelo nonsense de cariz surreal. É conhecida a sua passagem pelo neo-realismo, da qual não estava excluída a vontade de integrar uma das vias de oposição ao regime salazarista que se ofereciam aos artistas portugueses no pós-guerra. Mas uma observação cuidada da sua obra leva-nos a crer que muito pouco do que se passava na arte além-fronteiras lhe escapava.

Apesar de ter tocado uma série de disciplinas artísticas, este artista com nome de anjo sempre se considerou pintor. Não sem razão: os painéis de azulejo que cobrem as paredes portuguesas sempre foram suporte de pintura, e mesmo por vezes da melhor pintura que se fez em determinada época. Mas Querubim Lapa pintou também muito sobre tela, por vezes obras de acerto epocal notável, como a série das Feirantes. Foi, contudo, principalmente um ceramista. Não só por se tratarem de cerâmicas as suas obras mais conhecidas, mas pelas incontáveis gerações que formou ao dirigir durante cerca de quatro décadas as oficinas de cerâmica da escola António Arroio.

E porque passou tanto tempo nesta instituição, foi também decerto com a sua contribuição que, a pouco e pouco, o ensino que aí se ministrava mudou subtilmente de objectivo. De escola dedicada a formar técnicos de disciplinas artísticas que apoiavam a indústria, a António Arroio passou hoje a uma das duas escolas portuguesas, com o Arco, onde as artes decorativas têm lugar de destaque, na tradição da melhor valorização destas disciplinas que a Grã-Bretanha realizou desde meados do século XIX.  Esse saber técnico, sem o qual não existe a possibilidade de criar uma obra de arte consequente, foi e é ainda hoje a marca da obra de Querubim Lapa.

Pense-se, por exemplo, no painel de azulejos da Pastelaria Mexicana, em Lisboa, uma das melhores obras de Querubim Lapa. Nela, o painel cerâmico nega a sua bidimensionalidade habitual para se fazer relevo, escultura de parede, criando um sol alegórico que nos recorda alguma obra de Picasso. O pintor espanhol não surge aqui por acaso. É que lhe coube renovar toda a prática da cerâmica, considerando-a como matéria-prima da escultura de pleno direito, e isto a partir da sua estada na pequena vila francesa de Vallauris, entre 1948 e 1955. Foi um exemplo para  todos os artistas mais novos de como era possível adoptar uma disciplina conotada com as artes decorativas e trazê-la para o âmbito mais elitista das belas-artes.

Mas Querubim Lapa não criou apenas painéis em placas de cerâmica ou azulejo. A sua produção de figuras tridimensionais é igualmente importante, embora menos conhecida, e tem de ser colocada em paralelo com a de um outro artista seu contemporâneo, também ele docente, embora nas Belas-Artes de Lisboa. Falamos de Jorge Vieira que, vindo de um contexto mais politizado, considerava a terracota como um dos meios ideiais para contrariar os ditames da escultura oficial e monumental  do Estado Novo. Próximo de linguagens surrealistas não ortodoxas, contribuiu também, de modo importante, para a revitalização desta técnica.

Que se saiba, Jorge Vieira nunca fez azulejo. O seu espaço de eleição era o espaço íntimo do objet d’art, ao passo que a vocação urbana, cosmopolita, arquitectónica até, caracteriza exemplarmente a obra de Querubim. Como já disse, encheu-nos a cidade de cor.

Sugerir correcção
Comentar