Bancos escapam ao pagamento de capital nos empréstimos à habitação

Pedido de Carlos Costa para que o Governo altere aplicação da taxa negativa da Euribor nos contratos e a dramatização sobre impacto para o sistema financeiro conseguem travar projecto da esquerda.

Foto

Faltou muito pouco para a maioria parlamentar de esquerda obrigar os bancos a pagarem parte dos empréstimos da casa aos clientes. Faltou pouco, mas agora falta muito. Uma carta do governador do Banco de Portugal ao ministro das Finanças, a pedir nova legislação que impeça que as taxas descem abaixo de zero (datada de 5 de Abril), e a divulgação de dados sobre as elevadas perdas para os bancos que a possibilidade acarretaria, retira margem ao grupo parlamentar do PS para manter a redacção inicial de um projecto de lei sobre a matéria.

A iniciativa proactiva de Carlos Costa, ao pedir também o fim da utilização da Euribor nos contratos futuros, propondo a criação de uma nova fórmula de cálculo da taxa (a fixar a partir da média das taxas dos depósitos), que ficará necessariamente mais alta, vai conseguir travar a proposta conjunta dos grupos parlamentares do PCP e do Bloco, que o PS fundiu, sendo o autor da redacção final.

Essa redacção impunha a aplicação integral da taxa Euribor, actualmente em valores negativos, mesmo depois de anulado o spread (margem comercial do banco), o que obrigaria ao pagamento de capital por parte das instituições financeiras. O PÚBLICO teve a informação, que não conseguiu confirmar oficialmente, que o próprio Banco Central Europeu terá diligenciado junto das autoridades nacionais para que o diploma fosse travado.

Não há indicação de que o ministro Mário Centeno acate, em breve, a recomendação do governador, mas a possibilidade de aceitação das sugestões do governador, que pretende ainda que o spread ou margem comercial do banco se mantenha inalterada, ao contrário do que acontece actualmente, penalizando os empréstimos futuros, não deixa de funcionar como um desincentivo a alterações mais radicais.

Em declarações ao PÚBLICO, o deputado do BE, Paulino Ascenção, admitiu que as possibilidades do projecto de lei manter a redacção anterior são agora “bastante menores”. Já o deputado João Paulo Correia, do PS, de quem partiu a decisão de adiar a votação do texto final, adiantou que a questão terá de ser reanalisada, frisando que as propostas são do PCP e do BE.

Mas não restarão dúvidas sobre esse recuo, até porque o adiamento na votação do diploma foi justificado pelo PS com a necessidade de “uma avaliação mais aprofundada” dos impactos da alteração. A dureza dos números avançados pelo governador Carlos Costa na audição realizada esta quinta-feira na Comissão de Orçamento e Finanças e Modernização Administrativa (COFMA) não deixa margem para dúvidas.

Impacto nos bancos

Em resposta a uma solicitação da COFMA, presidida por Teresa Leal Coelho, do PSD (partido que juntamente com o CDS votou contra as propostas da esquerda), Carlos Costa atirou com um cenário mais dramático de perdas para a banca no caso de a Euribor acelerar a queda. Partindo da queda da Euribor a seis meses para -1%, um cenário que neste momento parece pouco provável (a taxa está em -0,142%), o impacto na margem financeira dos bancos ascenderia a 700 milhões de euros por ano.

Limitando a queda da taxa de juro a zero (como está a ser a prática actual), o impacto de -1% seria de 500 milhões de euros, avança o supervisor. Aplicado a queda actual da Euribor o impacto para os bancos é muito menor. No quarto trimestre de 2015, o saldo ainda era positivo para a instituições de crédito.

Sustentando a proposta de Carlos Costa na carta de 5 de Abril, a alternativa de se limitar apenas o indexante (Euribor) a zero (mantendo a cobrança do valor do spread), não haveria impacto na margem financeira dos bancos, refere o documento. Mas isso seria aplicável apenas aos novos contratos, já que, de acordo com uma carta-circular do Banco de Portugal, de Março de 2015, o valor negativo da Euribor terá de ser abatido ao spread.

O regulador referiu-se ainda a outros impactos negativos, mas neste caso para os clientes, ao nível da remuneração dos depósitos, que não pode assumir valores negativos, e da redução de financiamento à economia.

Em vários momentos, o governador referiu que, se o projecto de lei em discussão no Parlamento implicar na prática o reflexo negativo da Euribor sem qualquer limite, “é a estabilidade do sistema financeiro e a função de intermediação financeira da banca que são postos em causa”.

A mudança do supervisor

Ao contrário da porta aberta pela carta-circular para que o valor da Euribor fosse reflectido na taxa final, o que deixava implícito que depois de anulado o spread a taxa continuaria a assumir valor negativo, Carlos Costa defende agora que a queda da taxa tenha como limite zero, sustentando que colocar os bancos a pagar parte dos empréstimos dos clientes teria “um impacto devastador sobre a conta de resultados dos bancos”. Carlos Costa justifica a alteração de posição com a queda acentuada das taxas Euribor para níveis que “não eram previsíveis” em Março de 2015.

Segundo o governador, “não se admitia que a evolução do indexante pudesse anular o spread” e há casos, não em número muito elevado, em que isso já está a acontecer. Com a alteração de posição o BdP vem assumir a defesa daquela que já é a prática da banca, que é de travar o impacto negativo da taxa a zero. Com essa decisão, não há pagamento de juros, mas também não há pagamento de capital aos clientes.

O supervisor referiu –se à “onerosidade do mútuo mercantil”, prevista na legislação nacional. Neste momento, e contrariando o carácter oneroso, já há clientes que não pagam qualquer valor relativo a juros, limitando-se a pagar o capital em dívida. Este impacto ainda é reduzido. Mas poderá atingir um número considerável, já que 95% dos empréstimos à habitação em Portugal estão associados à Euribor a três e seis meses.

Sugerir correcção
Ler 9 comentários