Um amor que se dança com a violência do haka

Depois de passar pelas mãos de Rui Horta, o Romeu e Julieta de Shakespeare é uma peça em que bailarinos, actores e músicos alternam entre a violência e o desejo, trocando o insuflado romantismo amoroso por um tom marcial e carregado de testosterona. Em estreia no Teatro Camões.

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Não é grande segredo que Arthur Laurents, autor do texto do musical West Side Story, se baseou em Romeu e Julieta, o clássico de William Shakespeare, para traçar a sua história de amor proibido, plantada num bairro operário dividido por dois gangues rivais, Jets e Sharks, fervidos num conflito étnico e próprio das ruas, ritualizado e coreografado nas suas rixas. Com as devidas distâncias, também Rui Horta parte para o seu Romeu e Julieta tomado pela convicção de que na peça de Shakespeare “há muita testosterona”. O desafio foi-lhe lançado por Luísa Taveira, directora artística da Companhia Nacional de Bailado, deixando-o imediatamente “aterrorizado”. “Nunca na vida quis fazer um clássico”, explica ao Ípsilon. “Sempre tive um grande respeito pela dança clássica, uma espécie de matriz fundadora da dança, mas também sempre achei que os clássicos da dança não chegam aos calcanhares dos clássicos do teatro ou da música. Portanto, nunca tive essa necessidade como coreógrafo.”

Aos poucos, foi-se esbatendo esse primeiro estado aterrorizado, a ideia foi-se-lhe agarrando à pele e o incentivo para que a dança fosse, neste caso, contaminada pelo teatro e pela música lançaram Rui Horta numa espiral de sombras, num vórtice a preto e branco para onde empurra bailarinos, actores e músicos. “É uma peça nocturna – tudo se passa de noite, desde o amor à violência”, explica. “E visto homens e mulheres como homens, porque é uma peça de arruaceiros.” Foi também por aí que orientou a escolha da tradução usada nas vozes dos actores Pedro Gil e Carla Galvão, uma tradução de Fernando Villas-Boas que mantém a linguagem afiada, como numa extensão das facas desembainhadas, exemplificada num diálogo inaugural entre Gregório e Sansão que é uma coisa misógina, rasteira. Sansão e Gregório “como se fossem dois homens de mão, dois mafiosos que fazem tudo pelos seus senhores”.

A profunda fisicalidade deste Romeu e Julieta, cujo ponteiro alterna entre a violência e o desejo, anuncia-se desde os primeiros minutos, quando Pedro Gil à martelada prenuncia aquilo que está para vir. E é um martelo como imagem de agressividade básica, uma ferramenta doméstica que desmonta desde logo a visão romantizada do texto de Shakespeare. Pelos olhos de Rui Horta, este não é um palco para amores idealizados e levados até às últimas consequências por se imporem à (des)ordem do mundo; é um amor sujo, real, próximo das nossas caras, sem distanciamento. “Quando há problemas no amor, basta vermos nos tabloides, resolve-se tudo à espadeirada, à bofetada ou ao tiro”, argumenta o coreógrafo. Portanto, neste seu Romeu e Julieta que entende ser “um bocado como o Matrix – um filme a que se assiste para ver as lutas”, está impressa a consciência de que nos três dias em que a peça existe há dois suicídios, mais umas quantas mortes e um tempo que não permite lutos, apenas respostas a quente. Vive-se constantemente no excesso, num equilíbrio precário sobre um campo de morte. Por isso, Rui Horta “gostava que isto fosse um tsunami ou um furacão”.

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Talvez nenhum outro momento sirva tanto esta ideia quanto o desaguamento da violência acumulada num haka interpretado por um grupo indistinto – os rivais sê-lo-ão na história, mas não deixam de equivaler-se; este não é um espaço para bons separados dos maus, nem sequer para maus separados de maus, nem tão-pouco para um amor imune à violência. E chegamos então ao haka, essa dança de guerra ritualística que os maori usavam como factor de intimidação no campo de batalha e que a equipa neo-zelandesa de râguebi (os All Blacks) adoptou com o mesmo propósito de fazer o adversário engolir em seco e temer o confronto. Chegamos ao haka como corolário de uma sequência em crescendo marcial que os All Blacks de Rui Horta (também eles de preto) interpretam como um exército de fantasmas. “Ao mesmo tempo”, ressalva o coreógrafo, “serve para relativizar a violência. Os maori faziam este ritual quando sabiam que morriam ou matavam, mas estou também a dizer que isto é só um jogo, é só teatro. Com um sorriso.”

Pelas pontas

Entre 29 de Abril e 15 de Maio, o Romeu e Julieta em que Rui Horta troca a partitura de Prokofiev pelo jazz de câmara de Bruno Pernadas é apresentado no Teatro Camões, em Lisboa, regressando depois ao palco do Teatro Nacional D. Maria II entre 14 e 23 de Julho, enquanto um dos espectáculos fundamentais do Glorioso Verão – Festival Shakespeare, partilhado pelo Nacional com o Teatro São Luiz. “Tem tudo para correr mal”, acredita Rui Horta. “São 40 cavalos que vou ter de pôr a correr numa mesma direcção para puxar a carruagem.” Há três riscos envolvidos nesta observação: o da possibilidade de todas estas linguagens não colarem; o de o tom negro assustar um público que chegue à procura do jovem casal embeiçado até à morte, fazendo ouvidos moucos a proibições vindas de cima; o de o coreógrafo nunca ter trabalhado com um corpo de bailarinos tão extenso – 20 –, assentando muita da sua criação numa escala muito mais pequena, íntima, de quase nudez, limitando-se a um ou dois intérpretes.

Só que não se pode ser marcial ou bélico com meia-dúzia de rufias. “Imagino sempre que isto eram bandos de gajos à solta na noite daquela cidade, hooligans à cacetada, com martelos, matracas, facas, tudo o que agarrassem usavam para dar porrada nos outros”, diz. E também o estrondo ameaçador das botas no palco precisa desse efeito de grupo.

Este é um Romeu e Julieta que tenta fugir às convenções, seguindo o exemplo dos dois apaixonados de Verona. Rui Horta permite-se introduzir uma discussão conjugal entre os dois, em que se imagina com humor que a morte os pode salvar, afinal, de um futuro divórcio, com definição da custódia parental resolvida em tribunal e partilha de bens esgatanhada; e em que, no calor do bate-boca, trocam entre si um “morre!” e um “morre tu!” já raspadinho de qualquer romantismo. Neste Romeu e Julieta os corpos são acometidos de tremores do início ao fim, como se cada um não dominasse o seu próprio corpo e estivesse entregue a duas pulsões incontroláveis. Mais uma vez: a violência e o desejo. Um amor que, desta vez, não se dança em pontas; mas está pelas pontas.

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