A happy hour de Molière

Nuno Cardoso regressa à França do século XVII com O Misantropo, um espectáculo sobre o excesso que leva o teatro para a discoteca

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Nelson Garrido

A corte de Luís XIV era pródiga em mentiras, prazeres e jogos de influências e os locais onde se movimenta Celimena, a personagem que cria o espelho dessa sociedade desmesurada, eram cruéis. O ponto de partida é o de O Misantropo, de Molière, prestes a completar 450 anos. Trazer essa peça para os dias de hoje implica uma pergunta: Que espaço ocuparia agora aquele que estava então reservado aos salões privados em que viviam as figuras escritas pelo dramaturgo francês? As happy hours, responde Nuno Cardoso, que na nova produção do Ao Cabo Teatro, em estreia este fim-de-semana, meteu aquele texto clássico numa discoteca.

Os salões de Versailles onde se trocavam favores políticos, subornos e desejos românticos são uma espécie de “triturador” da vida social, por onde tudo passa: Celimena e a sua pulsão hedonista, mas também as pretensões literárias frustradas de Oronte ou a angústia resistente de Alceste, que marca o contraponto com o tom efusivo que, no mais das vezes, se apodera dos espaços em que se desenrola a peça. Todavia, se dessa “camada fina” da sociedade de nobres da corte francesa do século XVII quisermos passar para um ambiente contemporâneo e mais massificado, então o lugar por onde passa toda a vida social passam a ser os bares e as discotecas. É esta a proposta de Nuno Cardoso.

“A happy hour é o grande símbolo da cultura hedonista da classe média”, atira o encenador Para o director do Ao Cabo Teatro, é em lugares como estes que as pessoas encontram actualmente o seu fito. “É em função do que ali vivem que definem a sua forma de agir, o modo como se vestem ou a forma como se comportam”, diz. Também é ali que julgam os outros, como as gentes da corte.

É nesta actualização da proposta de Molière que se constrói O Misantropo que o Ao Cabo Teatro estreou esta quinta-feira no Teatro Nacional S. João, no Porto – o espetáculo mantém-se em cena até 24 de Abril, seguindo depois para Lisboa, onde vai apresentar-se no Teatro Municipal S. Luiz, de 11 a 15 de Maio. A montagem de Nuno Cardoso para esta peça preenche um palco revestido a acrílico translúcido e iluminado desde o seu interior, criando um ambiente artificial e desconcertante.

O resto do clima de diversão e prazer é conferido pelos jogos de luz e pela música, que nunca tinha tido uma presença tão concreta numa criação deste encenador. Ouvimos Al Green, Marvin Gaye ou Frankie Valli e vemos um rádio a pilhas de grandes dimensões, a fazer lembrar os anos 1980 e festas do pátio do bairro.

Formalmente, O Misantropo é uma comédia, ainda que, numa segunda camada de leitura, se perceba que o que abunda neste texto é angústia, crueldade e um desassossego em relação à vida na corte de Luís XIV. Nesse sentido, este espetáculo aproxima-se de “Medida por Medida”, de William Shakespeare, que Nuno Cardoso encenou em 2012. O texto do dramaturgo inglês era também uma comédia “sem graça nenhuma”, avalia o encenador, que então o usou como crítica aos excessos que tinham marcado os anos anteriores aos da crise que atingiu o país. O ambiente nesse espetáculo era também hedonista e brutal, como o que agora toma forma.

Contudo, a relação mais evidente de O Misantropo – cujo texto original completa 450 anos em Junho – com obras anteriores de Nuno Cardoso faz-se com outra peça do teatro francês da segunda metade de 1600. A incursão pelo universo de Molière acontece depois de o Ao Cabo Teatro ter levado à cena Britânico, de Jean Racine, estreado há praticamente um ano. A comunicação entre os dois espetáculos é nítida, mas estabelece-se por oposição.

Isso percebe-se nas principais opções da montagem para cada uma das produções. “Britânico” era provavelmente o trabalho mais minimalista de Cardoso, dando primazia à palavra, com uma encenação “toda ela a negar”, como então dizia ao Ipsilon. O Misantropo é um espetáculo mais complexo e excessivo, onde a corporalidade e o movimento voltam a ter um papel fundamental.

Desrespeitar as regras

O texto de Molière é, para Nuno Cardoso, “ultrajante”. “Nada ali é agradável”, sublinha o encenador. E esse foi o motivo que o levou a construir um ambiente feérico para esta criação. Em palco há champagne e batatas fritas, bem como a presença marcante da música, já assinalada, e de um aparente descontrolo nos movimentos em palco que parece caminhar para o caos. Essa direcção acentua as diferenças face a “Britânico”, que se passa nos bastidores do poder, enquanto as cenas de O Misantropo ocupam o espaço da vida social, no palácio onde se instala a nobreza.

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Nelson Garrido

A construção deste díptico francês não acontece por acaso. As duas peças são praticamente contemporâneas – O Misantropo foi estreado em 1666, “Britânico”, três anos depois – e foram pensadas conjuntamente por Nuno Cardoso quando planeou o actual ciclo de programação do Ao Cabo Teatro. Estes são dois espetáculos “nos antípodas”, mas que respondem ambos à vontade do encenador se debruças sobre a dramaturgia francesa clássica e tentar reclamar a sua actualidade. “São textos fantásticos que não devem ser esquecidos”, afirma o director da companhia do Porto.

O Misantropo presta-se também a ser um ponto de partida para pensar sobre o teatro e a arte, algo que é igualmente assumido na proposta de Nuno Cardoso. Ainda que o espetáculo aconteça na sala clássica do Teatro Nacional S. João, a discoteca desenhada pela cenografia de Fernando Ribeiro aparece “entalada” entre as primeiras filas da plateia e uma pequena bancada, montada sobre o palco.

Cria-se assim uma cena bifrontal, onde os actores estão em permanência, saindo e entrando do jogo em função do que o texto pede em cada momento. Há, pois, uma série de regras que são desrespeitadas, o que tem a ver com uma “reflexão sobre a convenção e o meta-teatro” que interessava ao encenador. Só que ao contrário das propostas meta-teatrais mais comuns, não são os actores que saem da tela para falar com o público. Em O Misantropo de Nuno Cardoso acontece exactamente o contrário: é o público que é convidado para estar no palco, para entrar no jogo e aceitar as suas regras.

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