Ricardo Ribeiro: “Sou um rebelde, toda a vida fui”

O título exprime uma dúvida, mas Ricardo Ribeiro nunca esteve tão certo do que quer fazer. Hoje é Assim, Amanhã Não Sei foi buscar inspiração ao Orfeu Rebelde de Miguel Torga e ele revê-se nessa imagem. Estará no Coliseu de Lisboa dia 30, com tudo o que tem para dar.

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FOTO: Aurélio Vasques

Na capa vemo-lo como nos habituámos: camisa escura, lenço, olhos semicerrados. E uma frase para lá do nome, suspensa de uma vírgula: "Hoje é assim," Só no verso do disco vem a resposta, a fechar a frase: "amanhã não sei." Está impressa sobre a fotografia de um horizonte enevoado, visto através de uma janela de pedra, tirada por Ricardo Ribeiro em Monsaraz.

O título remete-nos para esse horizonte, onde há-de surgir algo ainda indefinível. Ele explica melhor: "Há uma frase do professor Agostinho da Silva que diz: ‘Tento ao máximo não fazer planos para a vida para não estragar os planos que a vida possa ter para mim.’ Tal como ela, lembro-me de coisas que o meu pai me dizia; ou o meu avô: ‘ganhas dez, guarda sete, gasta três.’ Ou não o ouvia, mas já ouço." Tudo isto para chegar aqui: "O meu exercício preferido é pensar, exercitar os miolos, às vezes não tão bem como queria. E pensei: hoje é assim, amanhã não sei. A minha vida sempre foi espontânea. Por mais que custe a acreditar, as coisas iam acontecendo, sem as planear. Não foi planeado conhecer o [Fernando] Maurício, o Rabih Abou-Khalil, aquilo que fiz com a música antiga. As coisas aconteceram. Vivo um dia de cada vez. Por isso, hoje canto estes fados, amanhã não sei."

Liberdade e dúvida

E o que canta, hoje, Ricardo Ribeiro? Fados novos, outros antigos, palavras de Ary dos Santos, Almada Negreiros, Bernardim Ribeiro, Paul Verlaine, Luis Demetrio, Vinicius de Moraes. A ideia para este disco veio-lhe de um poema revoltado, o Orfeu Rebelde de Miguel Torga. No disco anterior, Largo da Memória, a inspiração viera-lhe da Toada de Portalegre, de José Régio. "No Régio eu via a memória e a dicotomia entre o bem e o mal. E no Torga, o Orfeu Rebelde, não me querendo comparar à figura da mitologia grega, sou rebelde, toda a vida fui. Não gosto de me sentir refém de nada nem de ninguém. Sempre que me senti refém, até do amor, não consegui sobreviver. Podem considerar-me leviano, mas é uma questão de liberdade, de não viver preso. E o Orfeu Rebelde fala nisso mesmo: "Ergo a voz assim, num desafio (…)/ Canto como quem usa/ Os versos em legítima defesa./ Canto, sem perguntar à Musa/ Se o canto é de terror ou de beleza."

A prisão de que Ricardo Ribeiro fala, pode vir até de si próprio, admite ele: "Tenho todas as características do Leão, que é o meu signo, mas também tenho muitas do Sagitário, que dizem que é o meu ascendente. Mas tento sempre temperar as minhas convicções com a dúvida. Como dizia o Fernando Pessoa, e eu aplico a mim (outra ousadia da minha parte), não tenho olhos tristes por profissão. Às vezes sou o inimigo de mim próprio. Mas também gosto dessa coisa, porque nuns dias sou o inimigo e noutros dias sou o melhor amigo. É bom, porque também me cura um bocadinho de algum egocentrismo que eu possa ter, pretendo sempre sublimar isso."

E como soa, neste disco, Ricardo Ribeiro? Na plenitude das suas capacidades de fadista e cantor, expressivo no estilar, mas com uma névoa de negrume que pode confundir-se com tristeza. Não por Torga, mas pelo estado do país e do mundo. Aliás, há dois temas escritos a pedido dele, Nos dias de hoje (Tozé Brito) e Portugal (Mário Raínho), que espelham bem isso. Ele explica: "O homem, em 50 mil anos, evoluiu mais fora dele do que dentro de si. Continuamos a nascer com cinco dedos em cada mão e cinco em cada pé, há tanto computador, tanta coisa, podemos fazer não sei o quê com um telemóvel e continua a haver gente com fome, gente a morrer nas guerras! Por favor! [parafraseia a canção:] Um bocadinho de amor, um bocadinho de esperança, um bocadinho dos olhos de uma criança. Eu preciso de cantar isto. Não é que esteja armado em cantor de intervenção ou em ser o puritano, o bonzinho cá do sítio. Mas faz-me mal, isto."

O disco abre com Estrada da vida, de João Dias Nobre. "É um fadinho dos anos 50. Já o queria cantar há algum tempo, mas ainda não tinha sido altura." E fecha com um poema trágico: Vasco Lima Couto escreveu-o pouco antes de morrer, à noite, na Taverna d’El Rey, em Alfama. Deu-o, escrito numa toalha de papel, a Manuel Mendes, que viria a musicá-lo. Na manhã seguinte, soube-se que ele morrera. É outra forma de dizer "hoje é assim, amanhã não sei".

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E o que canta, hoje, Ricardo Ribeiro? Fados novos, outros antigos, palavras de Ary dos Santos, Almada Negreiros, Bernardim Ribeiro, Paul Verlaine, Luis Demetrio, Vinicius de Moraes FOTO: Aurélio Vasques

Ary, Verlaine, Alentejo

Mas entre esses dois fados, que balizam o disco e de certo modo identificam um ciclo (vida e morte unidas no correr dos dias), Ricardo Ribeiro recorre à variedade da sua expressão vocal. Em fados como Eu sei que sou demais (de Joaquim Pimentel) ou Malaventurado (de Bernardim Ribeiro, que Oulman musicou para Amália) mas também cantando desenvoltamente em espanhol (Voy, do mexicano Luis Demetrio) ou em francês, onde se sente menos à vontade: Chanson d’Automne, um poema de Paul Verlaine já cantado em França, mas aqui com música original de João Paulo Esteves da Silva. "Ele fez um concerto comigo no CCB e eu atrevi-me a pedir-lhe para ele compor. Compôs o Soneto do mal amado do Ary e depois, como dos outros poemas que eu lhe mandei não lhe saiu nada, disse-me que tinha uma canção. E mostrou-me essa."

Há também um tema com música de Ricardo Ribeiro, que nasceu após uma noite de fados. "Eu tenho uma versão da Covilhã, cidade neve com o Pedro Jóia. E o Joaquim Pedro Gonçalves, autor da letra, gostou, foi muito amável e mandou-me três ou quatro poemas. Um deles é a Canção das águas claras. Ficou-me na cabeça. E lembrou-me o Orfeu, quando vai ao mundo inferior: ‘Morreram as águas claras onde os meus sonhos bebiam’. Entretanto eu andava a ouvir um disco do Bill Frisell, grande guitarrista de jazz de que gosto muito. E quando uma noite venho de cantar no Faia, veio-me a música à cabeça." Foi para casa, gravou, e mais tarde mostrou-a a medo a Carlos Manuel Proença (viola), o produtor do disco, que gostou e acabou por convencê-lo a gravar.

Curiosamente, os temas mais vivos e alegres têm a marca do Alentejo: o pícaro Fadinho alentejano, com letra e música de Paulo de Carvalho, e Rondel do Alentejo, um tema rítmico e sincopado com letra de Almada Negreiros, que Amália cantou e gravou. "Eu não posso cantar só coisas sérias, senão ninguém me leva a sério. E o humor dos alentejanos é fabuloso", diz Ricardo.

Quase a fechar o disco, antes do fado Último poema, de Vasco de Lima Couto, há um fado antigo de Vital da Assunção, Nos gestos nos sentidos, que ele já cantou muitas vezes, e há a Serenata do adeus, de Vinicius de Moraes, mas com um arranjo diferente. Voltando ao início, o que acha ele que as pessoas devem ouvir nestes tempos? "Precisam de ouvir falar de amor. Não de um amor de posse, subjugado, de interesse. Mas de um amor que só precisa de existir, sendo dado. Enerva-me esta coisa da palavra ‘partilha’. A origem etimológica é ‘dar parte de’. Ora eu não dou ‘partes de’, as pessoas têm de dar porque dão, e de preferência dar tudo o que podem. A quem está ao seu lado, a quem vêem passar e precisa. Dar. O amor não se partilha. Dá-se e recebe-se. Se amo uma mulher, amo-a, não a amo por uma parte. É como a palavra ‘conceito’. Este disco não tem um conceito, tem uma inspiração. Porque conceito é uma coisa que contém, que retém qualquer coisa. E eu não quero estar retido ou preso. Preso, não."

No dia 30 de Abril vai estar no Coliseu de Lisboa, a apresentar o disco. Com ele estarão todos os músicos, até o coral alentejano que canta no tema de Paulo de Carvalho. "Faz vinte anos que eu pisei este palco pela primeira vez, tinha 15 anos…" Sussurra: "Eu não sou da nova geração." Mas já foi, traçando aí o seu percurso. Retomando Torga: "O destino destina,/ Mas o resto é comigo."

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