O turismo? Que detestável

Há um fenómeno da nossa civilização, o mais importante do nosso tempo, que merece ser criticado, pelos efeitos devastadores que tem, mas não é fácil de criticar (e não exactamente por termos de lhe reconhecer também importantes efeitos benéficos). Esse fenómeno é o turismo. Quem mora no centro histórico de uma cidade com grande densidade de turismo (Lisboa já pertence a uma categoria bem situada na escala) acaba por se sentir expatriado e ver dificultados muitos aspectos da sua vida material. Mas a verdade, que ele não ousa confessar a si próprio porque raramente a reconhece, é esta: é que a cidade de que ele se sente expropriado e que ele lamenta perder não é aquela que existia antes do turismo (a essa cidade triste e cristalizada ele nem sonha regressar), mas a cidade formada e conformada ao turismo. O autóctone, no fundo, quer viver nesta condição impossível: numa cidade turística, mas sem turistas, ou numa cidade com turistas mas não turística. O autóctone mais sofisticado, treinado na crítica da ideologia, evita ter uma atitude racista, xenófoba ou de superioridade em relação aos turistas, mas esse cuidado é difícil de manter porque estes acabam por o irritar. Se não o irritam pelo que são e fazem, irritam-no pelo que significam. É que, involuntariamente, e sem o saberem, restituem-lhe, como um espelho, a imagem que ele deu a autóctones como ele nos momentos e nos lugares em que foi turista. O autóctone que se sente denunciado a si próprio é porque tem um alto grau de autoconsciência e pode decidir nunca mais fazer turismo, decisão que só vai agravar o seu ódio silencioso aos turistas. Já que as viagens não lhe estão reservadas em exclusivo, como ele implicitamente reclama, o melhor é desistir delas. Ele é um desencantado do turismo, mas não daquele desencantamento que quase todo o turista conhece, quando se dá conta de que a sua maravilhosa viagem serviu para lhe inocular o vazio e o tédio e tudo o que lhe estava prometido não passa de uma fraude. Pode ser que o autóctone mais ou menos culto, procurando ler teorias e histórias do turismo (um género muito menos abundante do que os livros de viagens), descubra num livro de um escritor alemão muito conservador, chamado Gerhard Nebel, um excerto onde se dizem coisas que só um alemão contemporâneo de Heidegger consegue dizer: “O turismo ocidental é um dos maiores movimentos nihilistas, uma das grandes epidemias do Ocidente, que no seu grau de nocividade está apenas abaixo das epidemias do Centro e do Leste, mas ultrapassa-as em silenciosa perfídia. Os enxames dessas bactérias gigantes chamadas turistas recobrem as substâncias mais diversas da viscosidade uniformemente cintilante que dá pelo nome de Thomas Cook, de maneira que acabam por não distinguir bem o Cairo de Honolulu e Taormina de Colombo”. E, a rematar, Nebel, que não conheceu o turismo de massas actual, tem uma frase que parece vir do círculo sinistro do grande vate Stefan George, onde se celebrava poeticamente uma “Alemanha secreta”: “Um país que se abre ao turismo fecha-se metafisicamente – oferece um cenário, mas já não a sua mágica potência”.  O problema é que esta denúncia do turismo é apenas mais enfática e empolada do que aquelas que são produzidas com frequência. Mas, tirando isso, há um ar de família neste discurso. O autóctone insensível aos fechamentos metafísicos continua ainda assim com uma enorme vontade de fazer uma crítica do turismo. Este bem merece, e muito, mas não é fácil. Mal começa a fazê-la, o autóctone já está a cair em armadilhas. Até por isto o turismo é um fenómeno detestável.

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