Centro Cultural de Belém, uma casa à deriva

Perdeu público e terreno como co-produtor e divulgador das artes em Portugal. Para uns, nunca teve um modelo de gestão adequado à sua ambição. Para outros, falta-lhe o fulgor da década de 1990. O seu ex-presidente, acusado de o afastar da sua missão artística, vai esta quarta-feira ao Parlamento.

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“Nunca vi um documento em que o Estado diga claramente o que quer do CCB”, diz Delfim Sardo PEDRO CUNHA

No dia em que António Lamas vai à Assembleia da República responder aos deputados, depois de um braço-de-ferro com o Governo que levou ao seu afastamento da presidência do Centro Cultural de Belém (CCB), o PÚBLICO pediu a seis agentes culturais que olhassem para este equipamento e reflectissem sobre o papel que tem hoje na cidade e no país. E o retrato que fazem é, em parte, o de uma casa que, apesar das boas propostas de programação do passado, algumas das quais verdadeiras descobertas para o público português, nunca teve um modelo de funcionamento sólido, capaz de resistir a pressões políticas e às mudanças que outros teatros e festivais foram impondo nos últimos 20 anos. Uma casa à deriva no que à oferta de espectáculos diz respeito, mas com âncoras que importa proteger, como os Dias da Música, a Fábrica das Artes e a Box Nova.

Numa altura em que quase só se fala do CCB nas entrelinhas da polémica que rodeou a proposta de Lamas para o eixo Belém-Ajuda, e que terá levado à sua substituição por Elísio Summavielle – um socialista escolhido por um governo PS para tomar o lugar de um independente nomeado por um executivo PSD-CDS, mas ambos homens com experiência na área do património , voltamos a colocar o foco na missão primordial deste centro cultural que nasceu há 23 anos: promover “a cultura, desenvolvendo a criação e a difusão em todas as suas especificidades, do teatro à dança, da música clássica ao jazz, da ópera ao cinema”. O CCB tem correspondido à ambição com que foi criado? Tem cumprido objectivos? É hoje tão relevante como foi no passado? O que faz falta para que construa uma identidade própria?

Delfim Sardo, curador e professor universitário que entre 2003 e 2006 dirigiu o centro de exposições do CCB, hoje ocupado pelo Museu Berardo, é o mais radical na análise. Diz, sem hesitações, que o centro “nunca cumpriu a sua missão” e que “sempre teve uma estrutura de gestão desajustada”, com “uma administração demasiado pequena para as suas ambições”. A estas dificuldades junta-se uma “vinculação ao poder político” que nunca permitiu que as suas direcções tivessem “distanciamento suficiente” para tomar as decisões necessárias.

“Quando o CCB abriu não se sabia exactamente o que ia ser, porque os objectivos não foram suficientemente debatidos e definidos”, defende Delfim Sardo, explicando que nos anos 1990 se tentou construir algo à imagem de um modelo que estava já esgotado. “Nunca vi um documento em que o Estado diga claramente o que quer do CCB. Se esse documento existe, e não estou a falar de estatutos, eu não o conheço. A indefinição é total”, acrescenta, tomando como exemplo a área das artes plásticas, que desde 2006 está consagrada à colecção Berardo, um acervo que considera “interessantíssimo” mas que, naquele espaço e com visão estratégica, poderia ser ainda mais valorizado. Como? Associando-o a outras colecções privadas portuguesas, algumas delas “em perigo”, como a da Fundação Ellipse.

Criar um grande museu de arte contemporânea no CCB, à semelhança do K20 de Dusseldorf, que tivesse em depósito obras de privados que o Estado português não tem capacidade para comprar e fosse capaz de criar uma relação duradoura com instituições congéneres, era o seu projecto para o centro de exposições, de cuja direcção se demitiu em divergência com o então conselho de administração. Já em 2006, Delfim Sardo pedia uma “remodelação do CCB”.

Hoje continua a pedi-la. Num “ano fulcral” – o curador refere-se ao facto de estar a chegar ao fim o acordo de comodato entre o Estado e o empresário Joe Berardo que permitiu ter exposta a sua colecção de arte em Belém nos últimos dez anos – há que “definir de uma vez por todas uma política de colecções” que passe por um “reajustamento do papel do CCB em relação à Fundação de Serralves e ao Museu do Chiado”, mas partindo de uma “visão estratégica”, culturalmente informada, que conte com o impacto que pode ter na formação de públicos, nas carreiras de curadores e artistas a trabalhar em Portugal.

“Já há peças da Ellipse expostas no Museu Berardo, mas é uma opção pontual, não é estratégica. Ter duas fundações no mesmo espaço [a Fundação CCB e a Fundação Berardo] não é uma solução adequada nem pacífica. É fundamental que o Estado defina o que quer fazer com aquele equipamento.”

É também de indefinição que fala o actor e encenador Pedro Penim, membro fundador do Teatro Praga, companhia que já teve o CCB entre os seus co-produtores e se apresentou diversas vezes no Grande Auditório. Há, diz, uma “crise de identidade” que deixou aquela casa onde os artistas sempre se sentiram bem num “limbo indistinto”, muito longe do “farol” que foi no final dos anos 1990.

“A minha geração [Penim tem 40 anos] habituou-se a pôr o CCB na agenda, a contar com aquelas salas quando planeava o que ia ver. Hoje não acredito que seja assim, embora pontualmente haja espectáculos que importa ver na programação. Mas é uma coisa mais avulsa”, diz, admitindo que gostaria de terminar a trilogia que os Praga ali dedicaram a Shakespeare  estão a trabalhar nisso com o programador Fernando Luís Sampaio (dança, teatro e música não erudita) – e que tem apenas um “capítulo” por concluir.

Para Penim, o CCB é o paradigma do desinvestimento nas artes em Portugal, tendo vindo a perder nos últimos anos o património que construiu e subaproveitando as condições logísticas e de equipas técnicas de que dispõe. Em parte, sublinha, porque lhe falta um “modelo capaz de resistir a imposições políticas”, em parte porque lhe falta uma “definição programática”. No teatro, exemplifica, os investimentos são espaçados e sem uma aposta clara, um rumo: “O CCB perdeu o seu lugar enquanto motor da contemporaneidade. E, além disso, não conseguiu acompanhar a programação das outras salas da cidade, sobretudo os teatros municipais.”

Essa incapacidade de ser “motor da contemporaneidade” está directamente ligada, diz o coreógrafo Paulo Ribeiro, ao desinvestimento em co-produções, algo que tem vindo a alterar a relação do CCB com os próprios artistas, que desde meados dos anos 1990  “época de ouro” com Miguel Lobo Antunes como administrador responsável por toda a programação artística (até 2001) e um naipe de consultores que incluía Mark Deputter (dança), Jorge Silva Melo (teatro), Madalena Victorino (Centro de Pedagogia e Animação, actual Fábrica das Artes) e Rui Neves (jazz) tinham ali um parceiro privilegiado.

O CCB, defende o também director do Teatro Viriato, em Viseu, não foi só o palco em que se viram as grandes companhias internacionais, criadores como Pina Bausch, Alain Platel ou William Forsythe, foi “um lugar grande para a criação portuguesa”: “Sentíamos que aquela era uma casa que nos dava condições de trabalho extraordinárias e uma perspectiva enorme, preenchendo uma lacuna no apoio ao teatro e à dança." Hoje, lamenta, “está completamente descaracterizado”, as boas propostas são esporádicas e o teatro e a dança ficaram para trás. “O CCB tornou-se uma casa da música mal assumida, com as outras áreas muito dispersas. Nós, artistas, perdemos a cumplicidade que tínhamos com ele, e ele perdeu a capacidade que tinha de nos surpreender. Já não temos o hábito de pensar no CCB como parceiro e estamos a perder o hábito de pensar nele enquanto público.” Mesmo que, sublinha, os Dias da Música e a Fábrica das Artes continuem a cumprir o seu papel.

Identidade volátil

Sérgio Hydalgo, programador da Galeria Zé dos Bois (ZDB), palco de referência para a música independente em Lisboa, também defende que o CCB tem responsabilidades acrescidas no apoio à criação, reconhecendo que, mesmo como montra de apresentação, está muito longe da importância que já teve. “Sinto falta de um CCB forte com capacidade para trazer artistas que outras estruturas mais pequenas, como a ZDB, não podem trazer. Mas artistas que se inscrevam numa linha coerente, como acontece com a Casa da Música, no Porto. O que hoje o vemos fazer é alugar salas para concertos, sem grande critério, à deriva, sem qualquer identidade e, por isso, sem capacidade para formar públicos.”

É verdade que a cidade mudou muito e os palcos se multiplicaram e se fortaleceram, mas ainda assim, seria “fácil” ao CCB, “com aquelas condições, aquela localização”, encontrar um rumo, mesmo na música, garante Hydalgo, 37 anos, um programador que deixou de ser espectador assíduo em Belém há cerca de uma década, mas que não esquece o arranque da Festa da Música, ícone da programação da casa feito à imagem da Folle Journée de Nantes, nem os espectáculos da coreógrafa alemã Sasha Waltz ou os concertos que ali viu do australiano Nick Cave, em 2004, e dos islandeses Sigur Rós, em 2001 (o primeiro que deram em Portugal).

“O CCB não perdeu fulgor apenas porque os artistas que ali se apresentavam migraram para outras salas – a ZDB, o MusicBox, os teatros municipais – ou para os festivais. Perdeu fulgor porque tem uma identidade muito volátil.”

A identidade frágil, ou mesmo inexistente, atribui-a o encenador Ricardo Pais à “falta de uma direcção artística à altura do edifício”. Pais, que fez parte da equipa que ajudou a lançar o CCB e lá apresentou ainda recentemente espectáculos como Meio Corpo, fala dele como uma “conquista surpreendente do cavaquismo, feita a uma escala inimaginável para a época”, com “grande ousadia”, mas que sempre careceu  “à excepção das artes plásticas, até à instalação da colecção Berardo, um erro” – de uma “direcção que fizesse sentido entre as artes performadas e as valências fixas que foi tendo, de que é exemplo o Museu do Design”.

Outro encenador, Tiago Rodrigues, director do Teatro Nacional D. Maria II, está entre os que pedem uma “direcção artística clara” para aquele equipamento, capaz de definir uma “linha programática adequada a um centro transdisciplinar e cosmopolita”, “fundamental no tecido cultural português como co-produtor, como cúmplice dos artistas”. Um papel que tem vindo a ser posto em causa, sobretudo no último ano, defende, quando o projecto de António Lamas para a gestão integrada dos museus, monumentos e jardins do eixo Belém-Ajuda levantou a possibilidade de o CCB deixar de ter uma missão eminentemente cultural. “De repente toda a discussão sobre o eixo tratava o CCB como um instrumento puramente político e não como um centro de criação e divulgação das artes”, lembra Rodrigues.

Os números

Semanas antes de ser exonerado, o então presidente da administração assumira em conversa com o PÚBLICO que a casa perdera protagonismo na cidade e no país e que precisava de um director de programação capaz de estabelecer parcerias com outras instituições. Em resposta aos que o acusavam de descurar a oferta artística e de se preparar para transformar o CCB numa espécie de escritório de luxo para gerir Belém, dizia que seria o último a corromper a missão do centro que foi encarregue de criar no começo da década de 1990: "Sei bem quais são as suas prioridades, que papel se espera que cumpra, porque fui eu que escrevi o programa do CCB."

Summavielle, o sucessor de Lamas, que se “estreou” no cargo na conferência de imprensa dos Dias da Música, há pouco mais de uma semana, ainda não anunciou quando vai apresentar oficialmente a programação até ao final de Dezembro  passado o primeiro trimestre do ano continua por revelar, já que Lamas saiu sem que o anterior secretário de Estado da Cultura ou o actual ministro a aprovassem , mas já disse que a missão cultural da casa é a sua prioridade.

“Olho com muita expectativa esta fase porque o CCB continua a ser um instrumento fundamental da cultura da cidade e do país”, diz o director do D. Maria, Tiago Rodrigues. “E espero que se reúnam condições para que recupere o seu fulgor junto dos criadores e do público.” Um fulgor que Delfim Sardo e Pedro Penim dizem depender de um modelo que está por definir e de um distanciamento das pressões políticas que o episódio da substituição de Lamas por Summavielle parece ter tornado ainda mais evidentes.

Tanto o presidente exonerado como o actual reconhecem que há um decréscimo de públicos, com um consequente decréscimo nas receitas, que deixa a instituição cada vez mais dependente do Orçamento do Estado e, por isso, cada vez mais vulnerável. Para 2016, a fatia que cabe ao CCB é de 19 milhões de euros, mais 2,5 milhões do que no ano passado, um aumento que, segundo Lamas, se deve apenas a um crescimento nas estimativas das receitas próprias.

Se olharmos para a evolução de públicos nos espectáculos do CCB (estão contabilizadas as actividades ao ar livre, assim como festivais e sessões em sala) desde a sua criação, em 1993, até 2015, constatamos que o período de maior vitalidade coincide com a segunda metade da década de 1990 e com a primeira de 2000. Entre 2006 e 2014, inclusive, aquele centro cultural não teve mais de 150 mil espectadores/ano. Só no ano passado voltou a ultrapassar esta barreira. As taxas de ocupação, valores dados em percentagem, não têm no entanto baixado, isto porque o número de sessões realizadas anualmente teve uma quebra assinalável.

Entre 2010 e 2015, a taxa de ocupação nunca foi inferior a 65%, embora o número de espectadores mais elevado registado neste período seja de 159 mil (2015), longe do pico de 2003, com 209 mil. 2014 foi o ano em que houve menos sessões no CCB desde 1997 – 278, contra o auge de 2001, com 544.

Delfim Sardo não tem percepção de haver uma quebra significativa no público do CCB, mas diz que é preciso cuidado na análise dos dados: “Não conheço os números. Os públicos até podem ser grandes, tanto nos espectáculos como no caso do Museu Berardo, que vive uma situação incomparável a qualquer outro museu português, já que a entrada é gratuita. O que interessa é avaliar o impacto efectivo que as propostas do CCB têm nesses públicos, algo que é muito mais difícil do que mostrar números.”

Paulo Ribeiro também defende que a reflexão que importa fazer vem antes dos números e deve responder à pergunta: “O que queremos todos nós –artistas, público, Estado – do Centro Cultural de Belém?” Garante o coreógrafo que o CCB tem um passado que justifica um futuro melhor do que este presente.

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