Médico investigado por ter ajudado amigo a morrer

Declarações sobre morte assistida dão processo na Ordem dos Médicos. Bastonária dos enfermeiros é ouvida nesta quarta-feira na Comissão Parlamentar de Saúde.

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A investigação foi aberta após semanas de debates acalorados Rui Gaudêncio (arquivo)

Há um médico que corre o risco de ser acusado judicial e disciplinarmente por ter ajudado um amigo a morrer — e, se isso acontecer, será o primeiro caso conhecido deste tipo em Portugal. O bastonário da Ordem dos Médicos (OM), José Manuel Silva, pediu ao Conselho Disciplinar do Sul da instituição que avalie as declarações feitas por Rui Moreno, médico nos cuidados intensivos no Hospital de S. José (Lisboa), que admitiu ao Expresso ter ajudado um amigo a morrer, há vários anos. Também o Ministério Público instaurou um inquérito, o que faz "sempre que tem conhecimento de factos susceptíveis de integrarem a prática de crimes", explicou a assessoria da Procuradoria-Geral da República.

Habituado a lidar com casos muito graves desde há três décadas, Rui Moreno recordou ao semanário que ouviu muitas vezes da boca dos doentes a “súplica, sentida, consciente, para que lhes terminasse com a vida” e reconheceu que acedeu uma única vez, a pedido do “melhor amigo” que definhava com um cancro no pâncreas, após três operações, com o tumor a avançar e a morfina “a entorpecer o mal sem o travar”. Nessa altura tinham ambos 40 anos. “Foi muito duro, muito difícil. Mas ele pediu-me e eu fiz”, assumiu.

Sobre este caso, o bastonário da Ordem dos Médicos não tem dúvidas: “Há vários tipos de homicídio. A ter acontecido como descrito, é um homicídio doloso, segundo me informei, e o prazo de prescrição será de 15 anos. Claro que terá várias atenuantes, mas decidirá quem de direito.” O médico do S. José não quis falar ao PÚBLICO.

A investigação a este caso foi aberta depois de semanas de discussões e de debates acalorados sobre o problema da morte assistida (que inclui a eutanásia e o suicídio medicamente assistido), na sequência da divulgação de um manifesto e de uma petição pela despenalização da morte assistida que foram postos a circular por um movimento cívico com o apoio de uma centena de personalidades, como o ex-primeiro-ministro Francisco Pinto Balsemão e a ex-ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz.

A bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, que assinou este manifesto, desencadeou grande polémica em Fevereiro, por ter sugerido num programa da Rádio Renascença que se praticava eutanásia nos hospitais públicos. Mais tarde, garantiu que as suas palavras foram desvirtuadas, mas foi mesmo assim alvo de um inquérito judicial, também foi entretanto ouvida pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, e esta quarta-feira de manhã vai estar na Comissão Parlamentar de Saúde, para onde foi convocada para esclarecer as suas declarações.   

Em Portugal, não há notícia de alguém que tenha sido julgado ou condenado por este tipo de prática, afirma Inês Fernandes Godinho, professora de ciências jurídico-criminais e autora de uma tese de doutoramento sobre eutanásia e direito penal. Assumindo desde logo que subscreveu o manifesto pela despenalização da morte assistida, a jurista nota que, de acordo com o Código Penal, que em caso algum refere a palavra eutanásia, o que é punível é o homicídio a pedido da vítima (artigo 134.º), com uma pena até três anos de prisão. Uma moldura penal substancialmente inferior à do homicídio simples (penas entre oito a 16 anos de prisão) e do homicídio qualificado (12 a 25 anos de prisão).

Na prática, esclarece também Inês Godinho, há várias formas de eutanásia e só uma destas é considerada crime em Portugal. Administrar um fármaco letal a um doente para abreviar a morte é uma forma de eutanásia activa e é punido pela lei. Já a eutanásia passiva (quando se deixa a doença seguir o seu curso, sem interferências) é mesmo considerada boa prática pelos médicos e acontece todos dias nos hospitais.

Se os médicos continuarem com os tratamentos contra a vontade do doente para lhe prolongarem artificialmente a vida, estão a fazer obstinação terapêutica (ou distanásia), o que também é proibido pelo seu Código Deontológico. Os médicos costumam chamar à eutanásia passiva suspensão ou interrupção do tratamento considerado fútil e desnecessário, lembra.

Falar de eutanásia gera sempre uma série de confusões. “Compreende-se. Talvez do ponto de vista médico seja difícil assumir uma terminologia que tem uma conotação negativa por causa do período nazi. Aliás, quando começaram a discutir esta questão, para não ressuscitarem sentimentos do passado, os alemães não usaram a palavra eutanásia, preferiram a expressão ajuda à morte”, recorda Inês Godinho. Mas “Portugal não tem o passado histórico da Alemanha” e é fulcral que estas questões sejam esclarecidas, até para se perceber do que é que se está a falar. "É preciso um diálogo muito intenso entre as duas profissões: médicos e juristas”, advoga.

Movimento decide próximos passos

O movimento cívico que defende a despenalização da morte assistida vai organizar no sábado à tarde uma assembleia para fazer um balanço e definir os passos que se vão seguir, no auditório da Escola Secundária Pedro Nunes, em Lisboa, a partir das 14h30. A comissão que tem coordenado o movimento vai propor a entrega da petição (que recolheu 7844 assinaturas) no Parlamento.

Depois da assembleia, está marcada uma sessão pública para voltar a explicitar as razões do movimento em favor da despenalização da morte assistida. Os oradores são a actriz Fernanda Lapa, o advogado Francisco Teixeira da Mota, o presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos, Jaime Teixeira Mendes, a jurista Inês Godinho e a filósofa Maria Filomena Molder.

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