Big brother na estrada

Da mesma forma que distingo um agente cordial e preventivo de um outro, arrogante e repressivo, arrogo-me o direito de ser distinguido de entre o condutor leviano, agressivo e criminoso, e aquele cujo único “crime” (aparte todas as infracções ao código de estrada) se reporta à condição de ser humano

A GNR/BT só não provoca aquele impulso imediato de repulsa, porque nos habituou a uma razoável sensação de segurança, que não é menor, e de que não queremos prescindir, uma vez que é determinante na nossa experiência social. As sucessivas operações sazonais (Natal, Ano Novo, Páscoa e outras) constituem actos de serviço público, útil e necessário. É por isso que não pretendo ver lidas estas palavras servidas pelo tom de quem se acabou de confrontar com a frustração, o despeito, a raiva e a vingança. Esse é o discurso (quase a heresia) de quem, combalido por alguma autuação mais grave, procura alvejar, com maior ou menor idealismo inocente e infantil, todo aquele que torna hostil e, em última instância, resvala para a inútil e injusta demonização dos operacionais da Brigada de Trânsito e Guarda nacional Republicana.

Acontece que a estrada é metáfora e recriação da nossa cultura de vigilância e da nossa civilização, baseada na intolerância, na violência, na sabotagem, na subversão e na prática do abuso do poder. É nas estradas que andamos todos os dias e por elas nos deslocamos para o exercício das nossas experiências emocionais, laborais, artísticas, utilitárias: elas são o caminho até à casa, ao local de trabalho, ao espaço da criação. É nelas que temos de abandonar os impulsos e ser acometidos pelas regras de convivência, que se resumem a normas de boa condução, como resposta contra a “violência do mundo”. É também por causa delas que as redes sociais se esmeram em confrontar as autoridades (note-se o ridículo), no sentido de usar e abusar de acções de sabotagem que implicam o aviso sobre o local onde os agentes da autoridade rodoviária actuam, de forma a ser bloqueado o sistema – trata-se de uma estratégia de insurreição ou subversão, integrada num contexto de desafio da autoridade e de pretensa defesa do cidadão, face àquilo que, grosso modo, se tem como exercício violento da autoridade sobre o condutor. Aliás, os laços solidários nacionais estendem-se aos oportunos, quanto ilícitos, sinais de luzes.

Na prática, as estradas são lugares de sobrevivência, espaços de abrigo para o jogo do gato e do rato: agentes vigilantes, escudados pela legitimação da lei, actuam de forma impositiva, e absurdamente aleatória, sobre o colectivo abstracto, composto por essa massa humana em trânsito. Ora o que faz mover as pessoas, deslocá-las, trazê-las de um ponto para outro? Em geral, o mundo laboral. Para quem se esquece, as pessoas trabalham e o meio que têm à disposição para o fazer é o veículo automóvel, e o que liga um ponto a outro é a estrada. Se a vigilância da estrada, da atitude do condutor e das práticas de condução se inserir numa lógica de prevenção, aconselhamento e recomendação, ela é, será sempre, bem-vinda. Já o radar colocado à beira da estrada e o veículo da BT resguardado (e disfarçado) à distância resulta numa intensa e total falta de respeito pelas comunidades e um indisfarçável acto de má-fé, para não mencionar o requinte traiçoeiro que evoca.

Creio intolerável o modo como se aborda o condutor: para o agente, ele é apenas o indivíduo que segue ao volante. Não tem história nem contexto, não se averigua sobre a profissão nem o que o move na estrada. Não: o agente exige documentos do veículo e do condutor (e não se apresenta – o nome não está patente nem é sua prática nomear-se) e solta a costumeira subtileza “sabe por que foi parado?”. É evidente que o condutor sabe. Mas este, que também já sabe que vai ser autuado em mais de uma centena de euros e que terá a sua licença de condução capturada, sabe igualmente onde é costume localizarem-se os radares, sabe onde é habitual refugiarem-se os zelosos agentes, sabe que no seu local de trabalho lhe não perdoam um atraso, sabe o que são excepções e atrasos, sabe a diferença entre lapso involuntário e prática criminosa e sabe que necessita de uma mordaça para não ter de explicar a um agente a destrinça entre ter absoluta consciência do seu desmando e aquilo que é pura e vil irracionalidade, e sabe até o desconforto do agente que dê o dito por não dito, sobretudo se pressionado pela máquina burocrática repressiva. Mas é um erro ser tratado por igual, quando cada condutor (e agente) carrega a sua história e, portanto, o seu pretexto. E sobretudo é imperdoável a prática da cultura de desconfiança sobre as pessoas, a quem invariavelmente se imputam as piores intenções. Conduzir em excesso de velocidade, em inúmeros casos, não é conduzir depressa e com risco – há que reavaliar métodos, sinalética, interpretações (verificando o histórico de coimas e o histórico de acidentes). Há também que, de uma vez por todas, combater a penalização habitual daqueles que percorrem os trajectos que a tutela autoritária impõe como alvos de vigilância – as máquinas de radar não são iguais para todos e em qualquer lugar.

A cidade de Portalegre (e o distrito em geral) é notável pela evidente carência social, laboral e económica, uma das maiores do país. É, igualmente, uma das regiões em que a vigilância nas estradas mais se faz sentir, por culpa, em boa hora, de um Centro de Formação da GNR ali estabelecido. A luta pela permanência desse espaço fundamental para a manutenção dos índices de desenvolvimento da região é imperiosa. Quando, na tarde chuvosa de 24 de Outubro de 2013, me associei ao cordão humano, exactamente para protestar contra a possibilidade de a escola ser transferida para outro local, quis, antes de mais e de forma solidária, reconhecer o valor prestado por aqueles que nos protegem da entropia e do caos. Porém, da mesma forma que distingo um agente cordial e preventivo de um outro, arrogante e repressivo (sem prejuízo de todas as cambiantes intermédias), arrogo-me o direito de ser distinguido de entre o condutor leviano, agressivo e criminoso, e aquele cujo único “crime” (aparte todas as infracções ao código de estrada) se reporta à condição de ser humano, isto é, produto de condicionamentos vários: laborais, familiares, sociais. Arrogo-me o direito do benefício da dúvida.

Um cordão humano é uma espécie de abraço colectivo, uma prova de confiança. Tenho dúvidas de que a tutela da GNR esteja a tê-lo em conta.

Professor

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