The Descendant acredita que "temos mais inícios"

Propondo-se a narrar o que acontece depois do apocalipse, o título da Gaming Corps tem uma estreia amorfa, deixando demasiadas respostas à sombra de pontos de interrogação maiores.

The Descendant

A marca de água de The Descendant é mais um apocalipse. A humanidade praticamente arrasou-se da face do planeta graças a abusos climatológicos que levaram a um evento-ponto-e-vírgula. De sete mil milhões de pessoas, apenas quatro mil foram seleccionadas para sobreviver depois de as bombas caírem, feitos “descendentes da humidade”. Da folha branca, Giles Armstrong tentou escrever a urgência e a aflição apresentadas ao jogador em duas linhas temporais distintas.

Para dar um sono criogénico aos eleitos, foram construídos abrigos especiais designados como Arks. A obra centra-se especificamente num desses bunkers subterrâneos, o Ark-01. As perspetivas permitem testemunhar o antes e o depois: Mia, uma Janitor, que zela pela manutenção desses espaços; Donnie, alguém que tem de investigar o que de tão terrível aconteceu na Ark-01 e procurar sobreviventes.

Sem ser uma novidade, estas duas linhas temporais permitem partir de dois pontos afastados e ir testemunhando a sua aproximação: antes e depois, jogando o miolo, calcorreando a normalidade e a destruição, a esperança e a desolação – da pergunta “O que terá acontecido aqui?” fica o ponto de interrogação elástico, moldável a bel-prazer do argumento, tentando motivar o andar da marcha, prometendo um cume recompensador da escalada.

Depois de terminado o episódio de estreia, Aftermath é, contudo, uma promessa que não é totalmente cumprida. Se bem explorada, a premissa seria interessante, com Mia a contar vivências de quem descobre à luz e Donnie a contar, depois, quem descobre à sombra; quem caminha atrás da esperança, averiguando a redução da humanidade à ínfima manifestação.

O jogador chega a The Descendant sem conhecer este universo e sai do primeiro episódio a saber pouco. Apostar num episódio de estreia com uma longevidade reduzida transpira a sensação de que se está sessenta minutos a passar uma tangencial à narrativa, com a Gaming Corps possivelmente a guardar os trunfos para o quarteto de episódios que resta publicar, mas enfraquecendo a substância do que se tem jogável para já.

Sem nunca chegar a grande arquipélago, há algumas ilhas temporais em que se consegue desfrutar Aftermath, momentos de ilusão em que a matéria brilha mais nos nossos olhos do que no monitor por vontade de querermos um porto, bom ou mau, a mostra de como ficará a humanidade depois desta razia. Sem desbaratar a conclusão, há formas mais justas de terminar um episódio do que com câmaras criogénicas vazias, um “ia agora mesmo começar a falar sobre isso” e um monitor fluorescente com um contador.

As mecânicas da jogabilidade que alimenta o até aqui descrito é uma página arrancada ao manual de instruções usado pela Telltale Games mesclada com um ligeiro apontamento de aventura gráfica. Ou seja, estamos incumbidos de pesquisar o cenário à procura de pistas, de combinar itens para ultrapassar complicações, escolher uma de várias opções de resposta possível; até a indicação que determinada personagem se lembrará da nossa escolha é exibida no ecrã.

A título de exemplo, um dos puzzles presentes nos momentos finais: precisamos de quebrar um cadeado e vemos um pequeno martelo pneumático convenientemente abandonado no caos. Nada como procurar uma bateira – não, a da lanterna não serve – portanto, procuramos até encontrar alimento para o item e posteriormente cilindramos a progressão. Mas nem esta nem qualquer outra situação é complicada o suficiente para reter o jogador mais do que três tentativas, mais do que um ou dois minutos enquanto chega a contemplar o recorrente “não pode ser isto, seria demasiado fácil”. Sim, é isso; sim, é demasiado fácil.

Logo a seguir à cena do parágrafo anterior, temos um conjunto de disjuntores e de luzes encarnadas. Novamente, duas ou três tentativas e está resolvido, uma vez que a lógica apenas tem cancela num das luzes que está partida, o que é facílimo de resolver, mesmo para o mais casual dos jogadores. O mesmo se aplicada a uma composição visual de três tubos que temos que desmontar e tornar a colocar no mesmo lugar, por terceiro exemplo. Ou seja, são exercícios que ninguém considerará frustrantes, porque são exercícios que muito poucos considerarão puzzles.

Onde The Descendant se destaca é no capítulo gráfico. Particularmente na linha temporal posterior, há variados pormenores que afiançam a viagem para um cenário em que algo não correu bem. Também aqui é transversal a inspiração em títulos como The Walking Dead e The Wolf Among Us, ou seja, é um grafismo com traços pronunciados em cel shading numa composição com texturas e modelagens que parecem desenhadas.

A protagonista de mãos desprotegidas e respiração livre, o protagonista de fato protector que impermeabiliza a carne, torna a situação séria. A iluminação em tons quentes contrasta com o mergulhar no negrume. A chegada à Ark-01 é um vislumbre de como tudo está tão deserto lá fora, de como se pode passar com o veículo por cima de um crânio que ficou por ali sem grande preocupação ou respeito.

Contudo, a vocalização deixa bastante a desejar. A humanidade está de rastos, não podia haver acalmia, não pode haver a sensação de que estamos a apertar a mão à normalidade como quem lê embalado na certeza de que há corações a bater na rua, na cidade, no outro lado do mundo, que o seu semelhante não é um grão de areia numa ampulheta.

Sendo disponibilizado por episódios, o futuro de The Descendant está nas mãos de quem o está a criar, ou seja, poderá assumir-se como uma série sólida ou provar que os males da estreia não foram contidos na sua primeira hora. A premissa continua a ser interessante e prometedora, dependendo de como terão capacidade de perceber o que falhou e, obviamente, na habilidade de o corrigir. Aftermath atesta, acima de tudo, que o entretenimento continua esfaimado pelo fim do mundo, e de pipoca na boca contrariar Steiner, contrariar que “we have no more beginnings”.

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