Adam Johnson viu a Coreia do Norte atrás do véu

O vencedor do Pulitzer de Ficção pelo romance Vida Roubada não voltou à Coreia do Norte desde que escreveu o livro. Mas não perdeu a obsessão por esse sítio sem voz. Nem a fé no poder transformador das histórias.

Foto
EDUARDO MARTINS

“Quando contamos uma história a alguém, dizemos qualquer coisa de muito pessoal sobre nós.”

É nisto que acredita Adam Johnson – no poder das histórias. Por isso, o escritor norte-americano que em 2013 recebeu o Prémio Pulitzer de Ficção pelo romance The Orphan Master’s Son, publicado em Portugal, pela Saída de Emergência, com o título Vida Roubada, lamenta que não façamos mais do que partilhar coisas que já conhecemos. Quando as pessoas se encontram hoje em dia falam do que ouviram nas notícias ou do que está no Facebook... “Passam a vida a responder que sim umas às outras – ‘Viste o Donald Trump? Viste o jogo de futebol?’  mas não há uma verdadeira troca de experiências”, diz ao PÚBLICO sentado no hall do MGM, um gigantesco hotel onde esteve a convite do Festival Literário de Macau – Rota das Letras. 

“Quando era pequeno contavam-se muitas histórias na minha família, principalmente entre os homens, mas nunca ninguém confessava se a história era real ou não. Vivíamos ao pé do rio Missouri, não havia televisão, contavam-se histórias de pessoas que conhecíamos mas também histórias míticas, muitas eram sobre o rio. O meu avô era um grande contador de histórias. O meu pai tinha sido caçador e tinha muitas histórias fantásticas de juventude. E o que é interessante é que não havia um sentimento de posse em relação a essas histórias, qualquer pessoa podia contá-las. E iam mudando com o passar dos anos, ficavam cada vez melhores”, lembra a rir-se o escritor que vive em São Francisco, nos Estados Unidos  é professor de escrita criativa na Universidade de Stanford –, mas nasceu no Dakota do Sul e cresceu no Arizona.

Um dos avôs de Adam Johnson sofria de demência relacionada com o envelhecimento, por isso não teve uma relação muito próxima com ele. Mas com o seu outro avô, que também ficou doente com Parkinson, Adam tinha uma relação completamente diferente. “À medida que ele envelhecia aconteceu uma coisa muito interessante: fiquei cada vez mais próximo dele, como se tivesse encontrado o seu verdadeiro eu”, contou numa sessão com os alunos do departamento de Inglês da Universidade de Macau, um dia antes da conversa com o PÚBLICO no hotel macaense.

Aquele avô do escritor, mecânico, foi enviado para Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial. Ali fez inúmeras coisas, desde arranjar os rádios dos bombardeiros até participar em missões de bombardeamento. “Tinha uma máquina de limpar a vapor. Quando os soldados morriam atingidos pelos alemães, havia sangue e entranhas que ficavam congeladas nos vidros dos aviões por causa da altitude. As tripulações seguintes recusavam-se a entrar nos aviões com o sangue congelado. Um dos seus trabalhos era limpar esse sangue. Ele nunca me contou essas histórias até ficar com demência, havia toda uma parte da sua vida que tinha mantido escondida até ali.”

E isso marcou o neto, que, tal como o avô, é muito bom a contar histórias. No final do ano passado, publicou o livro de contos Fortune Smiles (Random House), que lhe deu o Story Prize 2016 e também o National Book Award, transformando-o no único autor a ter recebido estes dois prémios pela mesma obra.

O livro abre com o conto Nirvana, que foi originalmente publicado pela revista Esquire e recebeu o Sunday Times EFG Private Bank Short Story Award em 2014, o mais importante prémio mundial para contos, no valor de 30 mil libras, cerca de 38 mil euros (pode ser lido on-line aqui). É dedicado a um amigo de Adam que se suicidou. “Ao longo dos anos aprendi a confiar nas minhas obsessões pessoais. Quer sejam um escritor, a Coreia do Norte, vídeos on-line, encontrar coisas no eBay... Isso significa que a minha mente e as minhas emoções estão ligadas a qualquer coisa. Se puser alguns desses temas numa história, as minhas emoções vão atrás. Acredito nisso. O meu amigo morreu, e por causa dos meus filhos e de a minha mulher estar doente [com cancro] não fui ao funeral. Ele foi meu companheiro de quarto na universidade durante quatro anos e só ouvia música dos Nirvana. Então comecei a pensar o que é que ele via naquela música. Não percebia por que é que ele se tinha suicidado...”, conta ao PÚBLICO o escritor de 48 anos.

Depois dessa morte, Johnson voltou a ouvir os discos dos Nirvana. Os filhos perguntavam que música era aquela e, de repente, toda a gente naquela casa parecia estar a ouvir Nirvana. “Kurt Cobain também se tinha suicidado e eu estava preocupado por a minha mulher estar muito doente. Por isso pensei numa história em que se pudessem trazer os mortos de novo para a vida recorrendo à tecnologia, a uma máquina que criasse um holograma a partir de fotos, vídeos, discursos dessa pessoa em vida. Mas a verdade é que não se traz um morto de volta.”

Imersos na propaganda
Para Adam Johnson, os contos podem ser ainda mais emocionais do que os romances. “De certa forma, os contos são pura emoção”, assegura ao PÚBLICO. Emoção tanto para o leitor, que os lê e é surpreendido, como para o escritor, que quando os escreve é uma espécie de “ditador”, controlando todo o processo do princípio ao fim. Num romance há mais imponderáveis. Talvez por acreditar nisso, o romance que lhe deu o Pulitzer, Vida Roubada, também esteve para ser um conto. Mas Adam começou a ficar tão obcecado pela Coreia do Norte que uma pequena história não chegou. “A Coreia do Norte é um tópico interessante e fascinante, porque a confirmação das nossas suspeitas nunca acontece, nunca somos recompensados pela nossa curiosidade ou pelo nosso interesse. O que é a vida das pessoas naquele lugar? O que é ser-se um ser humano num país com tanto controlo, onde a nossa identidade não é moldada por nós mas é-o externamente?”, pergunta.

Durante um ano inteiro, antes de escrever o seu romance, Adam leu todo o tipo de livros sobre a Coreia do Norte. “Queria saber como é que um homem encontra uma mulher e se apaixona. Queria saber o que é que as pessoas comem ao pequeno-almoço. Os pais dizem aos filhos que é tudo uma grande mentira, ou fazem de conta que está tudo bem? Não conseguia encontrar histórias destas, retratos humanos, porque a maior parte dos livros era sobre política e economia, sobre estratégia militar e nuclear. Depois descobri que muitas daquelas histórias que queria ler estavam na Internet. Eram contadas por missionários, por dissidentes, e eram mais impressionantes e poderosas do que alguma vez tinha imaginado”, confessa.

Foi por essa altura que também descobriu a propaganda. A Coreia do Norte disseminava os seus dois principais jornais com traduções em língua inglesa, e por isso pôde ler acerca dos “grandes trabalhos” de Kim Il-sung (1912–1994) e de Kim Jong-il (1941–2011) descarregando-os para o seu computador. Descobriu ainda sites com música e filmes e um canal tipo YouTube com imensos vídeos. “Percebi que a história que eles estavam a contar acerca deles próprios era completamente diferente das histórias que no Ocidente ou na América contamos sobre nós próprios. Fiquei fascinado com a propaganda e queria ver se conseguia escrever uma história com essa voz, embora o leitor percebesse a determinada altura que havia ali uma história humana”, explica, acrescentando que por toda a Coreia do Norte há altifalantes em edifícios e prédios de apartamentos.

Altifalantes? “As pessoas não os podem desligar. Estão imersas em propaganda de manhã à noite. Não sei se continuam muito activos, começaram nos anos 1970... Quando fui à Coreia do Norte, em 2007, com alguém que já lá tinha estado – só uma semana, muito controlado –, parecia haver menos altifalantes, mas não conseguimos confirmar como era dentro da casa das pessoas. Nos jornais, por sua vez, abundavam várias histórias de propaganda. Quando Kim Jong-il passava perto de uma flor, o que acontecia? Ela florescia. E quando ele pisava neve? Ela derretia. Isto podia estar na primeira página de um jornal. Faz-nos rir, mas e se estas forem as únicas notícias que lemos? Quis colocar esta voz no livro porque é importante e também porque é divertido.”

Adam Johnson diz que escreveu um romance sobre a Coreia do Norte, e não um livro de não-ficção, porque escrever ficção é o seu ofício. Se fosse um escritor de banda desenhada fazia BD, se escrevesse óperas tinha feito uma ópera. Mas sente que esta é uma situação em que a ficção tem vantagens sobre a escrita documental. “Como jornalista, escrever sobre a Coreia do Norte é difícil, porque nada é confirmado, tudo é especulação. Não se pode confirmar nada do que as pessoas nos digam, e a nossa maior fonte de informação são os dissidentes, que são seres humanos traumatizados, que de alguma forma já são pessoas diferentes: vieram embora, já são um outro tipo de norte-coreanos... Eles contam-nos histórias e não sabemos o que fazer com elas. Não podemos perguntar a ninguém: esta pessoa realmente viveu nesta aldeia? Esteve realmente neste campo? Pode acontecer que muito do relatado não seja exacto. As pessoas que estão traumatizadas, que perderam pessoas amadas, que sentem culpa por ter sobrevivido à fome, não devem ser colocadas no mesmo nível de veracidade de outros. Mas nada disso preocupa um escritor de ficção que pode usar rumores, mitos, pesadelos, sonhos, para criar um retrato.”

É claro que neste seu livro a ficção e a não-ficção de algum modo se misturam. Vida Roubada é um retrato imaginado que acontece num local real e o leitor é convidado a perguntar-se se esta é ou não a verdadeira Coreia do Norte. Na verdade, Adam Johnson nem sempre o sabe. Pesquisou durante muito tempo e compilou tudo o que pôde. Nos detalhes que dá dos camiões, das estradas, do que as pessoas vestem, dos barcos de pesca, dos túneis, sente-se confiante de que estão correctos. “O que ninguém sabe é o que é crescer naquele lugar. O que é envelhecer numa sociedade completamente totalitária? Isso tive de imaginar, e nunca poderemos saber como é na realidade a não ser quando os norte-coreanos começarem a contar a suas próprias histórias.”

Já passaram alguns anos desde a publicação do livro, se escrevesse agora esta história faria alguma coisa de diferente? “Antes de mais, agora há um novo ditador. Nós sabíamos muito sobre Kim Jong-il (1941–2011). Ele raptou uma actriz, Choi Eun-hee, que esteve ao seu lado durante muitos anos e quando escapou escreveu um livro. O seu chef pessoal era um japonês chamado Kenji Fujimoto, que fugiu. Fui ao Japão entrevistá-lo. Pelo contrário, não sabemos nada sobre Kim Jong-un, ninguém do seu círculo próximo conseguiu escapar. Seria mais difícil agora escrever sobre a Coreia do Norte. E com o passar dos anos a minha visão da Coreia do Norte evoluiu e talvez esteja mais rica; se calhar os retratos que faria teriam mais nuances por causa disso.”

Adam Johnson não é coreano, não fala coreano, e muitas vezes se questionou: “ Quem sou eu para escrever este livro?” Mas a verdade é que ao estudar a Coreia do Norte percebeu que é “um sítio sem voz”. Ninguém ali pode contar as suas histórias e os dissidentes têm muitas razões para não as contar porque são dolorosas; eles não querem olhar para trás, querem olhar para o futuro.

Este professor de escrita criativa na Universidade de Stanford defende que mesmo sendo as suas personagens ficcionais tem de se envolver com elas, situar-se no seu ambiente. Para criar uma personagem que faz entregas, por exemplo, foi trabalhar como estafeta. Se tivesse de escrever sobre o hotel onde decorre esta conversa, por exemplo, iria querer ver o que se passa na cave, onde fica a lavandaria, não se limitaria a olhar para o ouro e para os leões do hall. Iria tentar descobrir quem lava a roupa, ver de onde o dinheiro vem e para onde o dinheiro vai. “Não poderia situar uma história aqui a não ser que fosse espreitar lá em cima o telhado horroroso e ver o que se passa na cave. Tinha de falar com pessoas. Como escritor sinto a obrigação de encontrar uma maneira de fazer o retrato mais completo que conseguir. É o instinto de olhar atrás do véu.”

O PÚBLICO viajou a convite do Festival Literário de Macau – Rota das Letras

Sugerir correcção