Genética revela que o vírus Zika chegou ao Brasil em 2013

Vírus foi identificado no Brasil em Abril de 2015, mas terá chegado mais de um anos antes, vindo do Pacífico, mostram novas análises genéticas. Estudo estabeleceu relação entre epidemia e os casos de microcefalia.

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Mosquitos Aedes aegypti, responsáveis pela transmissão do vírus Zika, num laboratório em Campinas, no Brasil Paulo Whitaker/Reuters
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Nuno Faria Daniela Franco Sousa

À medida que os cientistas vão estudando a epidemia do vírus Zika, o seu passado vai sendo iluminado. O vírus foi identificado no Brasil em finais de Abril de 2015. Mas a verdadeira dimensão da epidemia só foi sentida nos últimos meses do ano passado, quando se começou a especular que havia uma ligação entre o aumento de casos de recém-nascidos com microcefalia e o surto. Um estudo de genomas do vírus Zika isolados em sete pessoas do Brasil permitiu agora recuar o momento da chegada do vírus àquele país.

Segundo os novos cálculos, o Zika terá entrado no Brasil entre Maio e Dezembro de 2013, mais de um ano antes de se ter dado por ele, adianta um artigo publicado nesta sexta-feira na revista científica Science, um trabalho assinado por dezenas de cientistas que foi coordenado pelo português Nuno Faria, da Universidade de Oxford (Reino Unido).

A explicação para o Zika não ter sido descoberto em 2014 pode estar ligada aos surtos virais que o Brasil sofreu nesse ano. “Em 2014, o Brasil teve uma epidemia forte da [febre de] dengue e foi detectado também o vírus Chikungunya. A dengue, o Chikungunya e o Zika causam sintomas relativamente semelhantes e transmitem-se através do mesmo vector, o mosquito Aedes”, explica ao PÚBLICO Nuno Faria. “É possível que a introdução inicial do Zika tenha resultado numa epidemia relativamente pequena e localizada e que esta tenha sido confundida com a da dengue e do chikungunya.”

O Brasil é um dos países que sofreram uma invasão recente do Zika. Cuba e a República Dominicana, no arquipélago das Caraíbas, foram os dois últimos países onde se identificou a transmissão do vírus, já neste mês de Março, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Só nas Américas, o surto já chegou a 33 nações.

O Zika foi identificado pela primeira vez no Uganda, em 1947, e pertence ao género Flavivirus, tal como o vírus da febre-amarela e da dengue. É transmitido na picada do mosquito Aedes aegypti, que vive nos trópicos. Mas também foi encontrado em outras espécies de mosquitos. Já foram descritos casos de transmissão de Zika em humanos durante relações sexuais.

Uma proporção alta das pessoas infectadas com o Zika não tem quaisquer sintomas. Mesmo quando a doença causa febre, dores, mal-estar e borbulhas, os sintomas não são intensos. Mas as autoridades de saúde receiam que a infecção esteja a provocar a síndrome de Guillain-Barré: o sistema imunitário ataca o sistema nervoso periférico, afectando o controlo do movimento dos músculos. A maioria das pessoas que têm esta síndrome recupera, mas entre 3 e 5% morrem por deixarem de conseguir controlar a respiração ou por outras complicações.

O grande problema é que em regiões populosas onde o mosquito Aedes aegypti é endémico o vírus acaba por infectar muitos indivíduos. Só em 2015, pensa-se que o Brasil teve entre 400.000 e 1,3 milhões de casos de infecção por Zika. Por isso, mesmo que cause a síndrome de Guillain-Barré numa proporção pequena dos infectados, o número total acaba por ser alto.

O mesmo se passa com a microcefalia. Já há 907 casos confirmados de bebés nascidos com este problema, de acordo com os dados desta semana do Ministério da Saúde do Brasil. A microcefalia é notória pela cabeça pequena dos recém-nascidos, que durante a gestação sofreram um subdesenvolvimento do cérebro. Estes bebés vão ter dificuldades cognitivas, na fala e no comportamento.

Apesar de já terem sido publicados estudos que associam o Zika à microcefalia (há inclusivamente três artigos em que se relata ter-se encontrado o vírus no cérebro e no líquido amniótico de recém-nascidos), ainda não se provou que o Zika causa a microcefalia. “A definição usada pelo Ministério [da Saúde] do Brasil para microcefalias e malformações congénitas assenta na medida do perímetro da cabeça dos recém-nascidos e mudou várias vezes desde os primeiros casos. A última é de 4 de Março e segue recomendações da OMS”, explica Nuno Faria, enumerando os vários factores que causam incerteza em relação a esta questão. “Há também alguma confusão sobre casos suspeitos ou notificados por autoridades de saúde públicas locais, e casos confirmados por imagens de ressonância. E tem havido relatórios e artigos com informações contraditórias sobre o número de casos em diferentes estados do país.”

A equipa de Nuno Faria, que envolveu investigadores a trabalhar no Brasil, Canadá, nos Estados Unidos e no Reino Unido, também abordou o tema da microcefalia no estudo. Os cientistas analisaram sequências de genomas de vírus do Brasil recolhidos num bebé que nasceu com microcefalia e morreu pouco depois do nascimento, bem como num homem de 35 anos com doenças auto-imunes e que também morreu, num dador de sangue e em mais quatro pessoas com infecções por Zika pouco graves.

Depois, os cientistas compararam estes genomas com vírus provenientes de outros pontos do mundo. “Usámos vários genomas completos do vírus recolhidos no Sudeste asiático, nas ilhas do Pacífico, nas Américas e em África”, relata o cientista português. “Os genomas dos vírus que evoluem rapidamente vão acumulando mutações ao longo do tempo. Através da quantificação dessa velocidade, conseguimos construir com precisão a história evolutiva.”

Foi assim que os cientistas estimaram o início do surto no Brasil durante o ano de 2013, muito antes do primeiro caso ser detectado. “Quantificar a diferença entre a data de entrada e a data de detecção de um vírus pode dar-nos indicações importantes sobre a eficácia de um sistema de saúde público”, diz o cientista.

Além disso, a equipa identificou a linhagem do Zika no Brasil, algo que ainda não tinha sido feito. Apesar de ter sido identificado em África inicialmente, algumas décadas depois o vírus chegou ao Sudeste asiático. Nos últimos anos, viajou rapidamente pelo Pacífico: em 2007 tinha chegado à Micronésia, em 2013 à Polinésia Francesa e em 2014 à ilha da Páscoa, no Chile. “Existem duas linhagens do vírus: a africana e a asiática. E é esta última a responsável pela epidemia nas Américas”, diz Nuno Faria.

Os cientistas analisaram ainda os dados de aviação de passageiros que entraram no Brasil vindos de países com surtos de Zika, notando que entre o início de 2013 e início de 2014 o número de pessoas oriundas desses países passou de 3775 para 5754 por mês, um aumento que coincide com a chegada do vírus. Os dados genéticos sugerem ainda que o vírus foi introduzido uma única vez no Brasil e depois espalhou-se.

A equipa procurou ainda mutações específicas do vírus que pudessem estar ligadas ao caso estudado de microcefalia, mas não descobriu nada. No entanto, encontrou uma “correlação forte entre a curva epidemiológica de casos de Zika e a curva de casos de microcefalia”, diz Nuno Faria. Há um atraso de cinco meses entre a primeira e a segunda curva, o que indica que a infecção em mulheres grávidas ocorre, em média, 17 semanas após a concepção.

Mas tanto para confirmar como é que o vírus entrou no país como para se afirmar que ele é, de facto, a causa da microcefalia, serão necessários novos estudos epidemiológicos e a sequenciação de mais genomas do Zika. Algo que Nuno Faria tenciona fazer. “Estamos a planear uma viagem pelos locais mais afectados no Norte e Nordeste do Brasil, onde sequenciaremos um número estimado de 1000 genomas do vírus”, diz o investigador. “Quando descobrirmos como é que o Zika se dispersa no espaço e no tempo, e quando determinarmos que factores influenciam a sua dispersão, poderemos prever as rotas de dispersão no futuro e tomar medidas para prevenir e eliminar a transmissão de uma forma mais eficaz.”

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