Uma noite enigmática na vida do Dr. Leonov

The Guest termina sem conseguir dissipar a escuridão com que envolve o jogador.

The Guest, uma noite enigmática na vida do Dr. Leonov

Estamos no Hotel Oak Wood, Belmont, Estados Unidos da América. Estamos aqui vestindo a pele do Dr. Evgueni Leonov, cientista de visita a Massachusetts pela realização próxima de um congresso. Ao longo de aproximadamente três horas emprestamos a nossa vida a Outubro de 1986. A chuva dá banho à madrugada. São 4h23 da manhã e começa a aventura de The Guest.

Sabíamos que dificilmente seria uma viagem convencional, contudo o jogo da madrilena Team Gotham não se ensaia nada para insuflar os primeiros pontos de interrogação no pensamento de quem joga. Apenas alguns minutos após termos começado a passar os olhos pelo desconhecido deparamo-nos com uma porta sem maçaneta; um candeeiro sem lâmpada; uma caixa de ferramentas fechada a cadeado com um código de três algarismos; uma etiqueta diz-nos que Leonov aterrou vindo de Volgogrado; um caderno com uma folha rasgada.

São os primeiros exemplos que indiciam o que The Guest é: um enigma como areia movediça, que começa com um fio de curiosidade que a produtora tenta urdir à nossa volta até absortos tentarmos solucionar a vida de alguém que conhecemos há minutos. As horas seguintes comprovam que a sua índole pertence às aventuras gráficas.

Portanto, temos que julgar cada cenário ao pormenor, recolher um manancial de objectos, itens que teremos que examinar, combinar com outros, usar: o padrão nos jogos que pertencem a este domínio e que ainda têm na LucasArts bitola. Existem também objectos que encerram em si pistas para a solução de enigmas posteriores. Algo recolhido nos primeiros minutos poderá ser útil perto do final do jogo, o que obriga a um pensamento atento, capaz de avaliar cada situação friamente, sem descartar absolutamente nada.

É sempre curioso comprovar os efeitos secundários destes procedimentos. É um constante estado alerta, ou seja, sempre que é adicionado algo ao inventário, há um registo interno no jogador que pensa onde o poderá usar e/ou combinar. Há uma fase lógica: combinar combustível com um isqueiro e usar o resultado para acender os candeeiros na recta final do jogo ou rememorar a nossa estadia até então para resolver o último puzzle. Contudo, há também bastantes itens que são espalhados (e recolhidos em muitos casos) apenas para criar ruído, distracções que inicialmente estamos certos serem úteis para desfechos futuros.

QuandoThe Guest começa a descarrilar – não o eufemismo usado pela família Knausgård – é quando chega a constatação de que alguns puzzles são picos escusados de dificuldade, ou seja, quando a curva de aprendizagem é sabotada. Quem começa a jogar uma aventura gráfica saberá que é quase certo ficar detido em algum puzzle, sendo apenas uma questão de tempo. Todavia, os bons exemplos do género tornam-se difíceis dando ao jogador a sensação de que será uma questão de estudo e perseverança. A obra tem momentos em que o pensamento delicado parece encurralado. 

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Enquanto testa a atenção que lhe prestamos, o jogo consegue ser uma proposta interessante – como as letras assinaladas a encarnado nas revistas que vamos encontrando ou na forma como recorremos a um esquema para solucionar um problema com a energia. Não são propostas para serem conquistadas à primeira tentativa, nem é isso que procura quem as joga.

Somos ainda contemplados com desafios em que a produtora demonstra algum desconhecimento na praticabilidade das suas resoluções. Há um puzzle relativamente simples em que temos que replicar vários tons sonoros. Nada de revolucionário e que deveria consumir pouco tempo. Porém, torna-se complicado pela pouca assertividade nos próprios tons e pela distracção sonora próxima. Outro exemplo: temos que combinar dois anéis com um terceiro objecto e alinhar o trio em movimentos seguindo um desenho próximo, algo interessante de deslindar, mas que ganha contornos frustrantes pela parca precisão dos controlos.

Não sendo esquecíveis, estas situações de desmaio emocional poderiam ser mitigadas se o arco narrativo fosse um desafio à curiosidade, à incessante vontade de ter que saber o final. Mas não é algo que aconteça, apesar de a última meia hora ter revelações que atam alguns nós, outros parecem abandonados, ficando a sensação que não passaram de engodo. Os créditos rolam sobre uma pálida imagem de quem é Dr. Leonov.

É um tema com uma toada científica e um desfecho de iluminação, de ser o escolhido para um novo início, de, tal como o jogador, o protagonista ser obrigado a passar uma série de testes para provar o seu valor. Mas ficam muitos detalhes por explicar sobre este protagonista, como chegou a este quarto de hotel e, não menos importante, muitos detalhes sobre o caminho que aqueles sapatos seguirão depois do encerrar da aventura. No meio da perseguição científica, a produtora ainda encontrou tempo para incluir a opção de rezar em evidência no final do jogo, onde agradecemos ao misterioso The Benefactor.

Algo que o título consegue exercitar é a construção de uma atmosfera envolvente. Sem nunca ser um portento técnico, a obra consegue transparecer uma noite confusa na década de oitenta, iludir o jogador, fazê-lo arrepiar-se com uma claustrofobia e a confusão de, em último caso, estar a protagonizar uma metamorfose numa prisão mascarada de quarto de hotel.

Os toques de tempos idos estão presentes em alguns pormenores de decoração, em alguns puzzles, nas artimanhas usadas para dar pistas visuais. Madeiras, o calor do seu tom, chocam com o futurista dos momentos finais, contrastando o presente com o futuro, o velho com o novo.

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Sem nunca ser esfuziante, a obra tem no seu design sonoro inquietação, um seguimento de apontamentos que ajudam a desassossegar, ou seja, não estão aqui como estão num quarto de hotel enquanto de férias. Aliás, como provado, nem estão aqui como estão em viagem de trabalho – a expectativa de participar num congresso cedo dá lugar à percepção de como se sairá daqui.

Com falhas na forma como tenta captar o investimento do jogador e lançar-lhe um desafio irrecusável, ocasionalmenteThe Guest consegue desdobrar-se naquilo que poderia ter sido: puzzles que deveriam misturar a combinação de itens com pensamentos lógicos e criativos, situações que deveriam ter sido entretidas por um arco narrativo contundente na hora de explicar este aprisionamento. O ocasional devia ser constante para que o jogador anuísse quando inevitavelmente se questionar sobre os desígnios das últimas horas.

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