Obama, o realista

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1. No dia 1 de Julho de 2015, os Estados Unidos e Cuba reabriram em Havana e em Washington as respectivas embaixadas, fechadas há 54 anos. Foi um acto de profundo simbolismo, culminando a nova política de Obama em relação a Cuba, até agora uma estranha excrescência da Guerra Fria num mundo em que a própria União Soviética desapareceu. Obama chega hoje a Havana com a família, ficará três dias. Encontrar-se-á com dissidentes. Só isto é, a todos os títulos, extraordinário. Há uma longa história que alimentou o embargo americano e a hostilidade cubana que justifica a permanência deste anacronismo, que começou na Baía dos Porcos, uma operação militar falhada, preparada pela CIA antes de JFK chegar à Casa Branca mas que ele autorizou, e que teve o seu momento alto em 1962, com a crise dos mísseis que Nikita Krouchev mandou instalar em Cuba, colocando o mundo muito próximo de um conflito nuclear. Cuba sobreviveu ao fim da Guerra Fria perdendo a ajuda económica maciça de Moscovo e abrindo as portas a um período de miséria que obrigou muitos cubanos a tentarem chegar à Flórida em barcos bem mais frágeis do que os que vemos hoje no Mediterrânio. Fidel utilizou o embargo americano como pretexto ideal para justificar as duras condições de vida dos cubanos e um regime altamente repressivo. A chegada de Raúl Castro ao poder em 2008 iniciou uma fase de alguma abertura em matéria de economia. Obama testou o seu método negocial com os inimigos, que anunciou na tomada de posse: estender-lhes a mão, esperando que abrissem o punho. Teve a ajuda do Papa Francisco. As negociações secretas prolongaram-se por mais de um ano. A reaproximação abriu as portas a uma relação muito mais fácil com os países da América do Sul, retirando protagonismo às correntes populistas e antiamericanas que tiveram o seu auge no bolivarianismo venezuelano. Como escreve a Economist, a manutenção do embargo era “um exercício de futilidade”. Com um impacte muito maior para a segurança mundial, um método idêntico foi utilizado com Teerão até estarem criadas as condições para uma negociação pública, envolvendo também os países europeus.

2. A sua visão sobre o papel único dos EUA no mundo operou uma significativa mudança na política externa americana, depois das guerras de Bush. Obama não quer que os EUA deixem de ser a nação indispensável, mas também quer que deixem de ser “o polícia do mundo”. Agir com os aliados, privilegiar a diplomacia, evitar a utilização da força militar, valorizar as instâncias internacionais: é este o seu credo. A outra grande mudança é o abandono do “regime change”, que inspirou a política do seu antecessor. Revê-se mais no realismo de Bush pai, do que no “intervencionismo humanitário” de Clinton. O realismo marcou a sua política externa. Hoje, criticam-no por ter falhado na Síria, quando Damasco ultrapassou a “linha vermelha” que ele próprio traçou, ao utilizar armas químicas contra os sírios. Putin ofereceu-se como intermediário, as armas foram retiradas. O custo foi um vazio de poder que Putin se encarregou de ocupar, afirmando-se como um actor indispensável no Médio Oriente através da Síria.

Os mais críticos dizem que Obama afectou a credibilidade americana. Michael O’Hanlon, da Brookings Institution e conselheiro de Hillary na sua primeira candidatura, critica sobretudo o facto de Obama ter abandonado à sua sorte “aliados fundamentais como a Jordânia, a Turquia ou o próprio Iraque”. O Presidente defende a sua decisão de outra maneira, porque recusa uma nova intervenção militar de grande escala, correndo o risco de não resolver nada. Obama tem uma visão diferente do Médio Oriente, que não considera uma prioridade estratégica da América, a não ser na questão da segurança de Israel. Fechou o acordo com Teerão, o seu principal objectivo, e disse a Riad que deveria partilhar a sua influência regional com o Irão. Apoiou-se na independência energética dos EUA para aumentar a margem de manobra em relação a regimes condenáveis como o saudita. Quando deixou cair Mubarak, em 2011, os seus aliados regionais perceberam que alguma coisa tinha mudado. Mas, em 2009, foram precisos muitos dias de manifestações brutalmente reprimidas em Teerão para dizer alguma coisa contra o regime. Também entende que os europeus estão em condições de fazer muito mais pela sua própria segurança, sem estarem sempre a contar com a “cobertura política e militar americana”, resume Simon Tisdall no Guardian. Mas o revisionismo agressivo da Rússia, com a ocupação da Crimeia e do leste da Ucrânia, obrigou-o a olhar de novo para este lado do Atlântico, definindo com a chanceler alemã uma política de sanções bastante duras, mas que dificilmente vergarão Putin. Aceitou uma presença militar mais visível dos EUA nos países que se sentem directamente ameaçados, como a Polónia ou os Bálticos. Confortou os aliados europeus, depois de ter anunciado o seu pivô para a Ásia-Pacífico (agora crismado de “rebalance”), considerando a emergência da China como o mais importante desafio de longo prazo que os EUA vão ter de enfrentar. Deixou claro a Pequim que não tenciona abandonar o Pacífico e renovou os laços de segurança com os países da Ásia do Sul que rodeiam a China (e a temem). Foi respondendo de cada vez que Pequim testou a sua determinação. Mantém um difícil equilíbrio entre contenção e cooperação que os aliados europeus consideram demasiado duro. “Obama considera que a emergência da China e da Índia como as duas potências mais evidentes do século XXI obrigam os EUA a mudar o seu foco”, diz Martin Indyk, do mesmo instituto.

Voltando à Síria, “ele queixa-se de que o establishment parece ter sempre o mesmo refrão, que requer o uso da força de cada vez que emerge uma crise que desagrada aos EUA”, diz O’Hanlon. “Obama, pelo contrário, apela para uma abordagem estratégica do emprego da força militar muito mais restritivo e selectivo.” O subdirector da Brookings acrescenta que o Presidente tem uma visão estratégica coerente para o poder da América no mundo, “mesmo quando isso o faz parecer indiferente ou indeciso na resposta a alguns tipos de crise ou desafio.”

3. Num texto de mais de 60 páginas publicado no número de Abril de 2016 da revista The Atlantic, Jeffrey Goldeberg faz um balanço puro e duro da política externa de Obama, depois de horas e horas de conversa com o Presidente e que começa assim: “Na sexta-feira dia 30 de Agosto de 2013, o dia em que Barack Obama colocou um fim prematuro ao reinado da América como a única e indispensável superpotência – ou, em alternativa, o dia em que o sagaz Barack Obama olhou para o vórtice destruidor do Médio Oriente e deu um passo atrás , começou com um discurso do seu secretário de Estado John Kerry, feito em seu nome. O tema das palavras anormalmente churchillianas de Kerry, pronunciadas na Sala dos Tratados do Departamento de Estado, era a utilização de gás sarin pelo Presidente sírio Bashar al-Assad.” Obama não acompanhou o tom de Kerry. Hoje, o Presidente diz que agiu bem, porque o seu propósito foi alcançado com o desmantelamento do arsenal químico de Al Assad. Mas a crítica não é apenas à forma como o Presidente se manteve fiel ao “retraímento estratégico”, deixando um vazio que outros trataram de ocupar. É também sobre as centenas de milhares de mortos e os quase dez milhões de deslocados e refugiados que a guerra provocou. Um desastre humanitário de proporções gigantescas.

Hoje, em Cuba, o seu legado não estará em causa porque a sua simples presença continua a inspirar muita gente nos quatro cantos do mundo. Será um acto simbólico de um Presidente que mudou a relação dos EUA com o mundo.

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