A violência doméstica pode ser recíproca?

Nos casais envolvidos em agressões mútuas pode não haver uma dinâmica em que um é agressor e o outro é vítima.

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As mulheres recorrem mais á violência psicológica e os homens mais à violência física Pedro Vilela

Um clima de cortar à faca. A qualquer instante, discussão. Num dia, o homem pegou numa faca de cozinha e desferiu um golpe na mulher. Noutro dia, estava ele a lavar a louça, ela deu-lhe uma vassourada nas costas. Noutro dia, ele atirou-lhe um prato à cabeça, ela fugiu e ele ainda tentou dar-lhe com um pau. Noutro dia, estava ele deitado, ela deu-lhe socos e murros. A violência doméstica pode ser recíproca? Já há jurisprudência a estabelecer que não.

Não há estatísticas sobre os chamados casos de denúncia contra denúncia. “Não há base de dados capaz de dizer isso”, explica o tenente-coronel José Magalhães, comandante territorial da Guarda Nacional Republicana (GNR) no Porto. “As queixas podem ter várias origens. Podem ser formalizadas por qualquer pessoa no Ministério Público, na PSP, na GNR. Depois de o agressor ser confrontado com os factos, pode formalizar queixa noutro órgão de investigação criminal.”

Para perceber essa realidade era preciso passar os processos a pente fino. “Se uma pessoa faz uma denúncia de violência doméstica e se percebe que já há uma denúncia contra ela, a segunda fica apensa à primeira”, esclarece Fernanda Alves, coordenadora da secção do Departamento de investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa que lida com este tipo de crimes. “São situações muito mais complexas de resolver”, salienta. “As versões são completamente contraditórias e, muitas vezes, não há qualquer testemunha.”

Já se sabe há muito que as mulheres recorrem mais à violência psicológica e os homens mais à violência física. Novas investigações mostram que as lesões também se distinguem, afiança Teresa Magalhães, professora na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Entre 2007 e 2009, passaram pela Delegação Norte do Instituto Nacional de Medicina Legal 4646 supostas vítimas de violência doméstica, 535 das quais do sexo masculino. “O comum é [as mulheres] apresentarem, sobretudo, lesões na cabeça, na face e no pescoço; os homens é mais nos antebraços”, diz. “Isso leva-nos a pensar que muitas vezes as lesões que eles apresentam têm a ver com a defesa delas. Ao defenderem-se, elas arranham, dão socos.”

Num caso de denúncia contra denúncia, há que perceber bem a dinâmica do casal. “Podemos estar a falar de legítima defesa”, lembra a procuradora Teresa Morais, do DIAP do Porto. “E podemos nem estar a falar de violência doméstica, mas de incapacidade inter-relacional.” As perícias médicas ou psicológicas desempenham então um papel chave.

Há pessoas que contam logo que a relação sempre foi conflituosa, exemplifica a psicóloga forense Catarina Ribeiro. Dizem: “Ele deu-me um estalo e eu atirei-lhe com uma cadeira”. “A violência foi sendo legitimada como forma de interacção. As pessoas ora estão bem, ora estão a agredir-se mutuamente”, esclarece. Nestes casos, “não se consegue identificar uma dinâmica em que um é agressor e o outro é vítima”. O poder oscila. As fragilidades de cada um vão sendo aproveitadas. Um não consegue ocupar a posição desejada no emprego, por exemplo, e o outro ataca: “És fraco, não tens ambição, nunca chegas a lado algum.” O outro pode ter outro tipo de insegurança: “Nunca te conseguiste libertar dos teus pais. Se não casasses comigo, não casarias com mais ninguém.”

“Estes casos são significativamente mais raros”, realça a psicóloga, que é também investigadora na Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica do Porto. Nestas situações de agressão mútua, as pessoas comportam-se de maneira distinta. “Não têm vergonha de apresentar queixa. É típico haver um momento em que há um crescendo de violência e um deles faz queixa e o outro faz o mesmo. A queixa é quase uma forma de retaliação. E uma forma de defesa.” Não lhe parece difícil diferenciar estes casos de violência recíproca dos de agressão/defesa. “Normalmente, as vítimas que agem em legítima defesa têm um histórico. São pessoas que acumularam um desgaste enorme, cristalizaram o medo, e um dia, reagiram.”

O caso mencionado no início deste texto chegou ao Tribunal de Valpaços em 2009. A decisão proferida não distinguiu um do outro. Tanto o marido como a mulher foram condenados a dois anos e quatro meses de prisão por violência doméstica, suspensa na execução. Já em 2013, o Tribunal da Relação do Porto absolveu a mulher do crime de violência doméstica e condenou-a por dois crimes de ofensas à integridade física e a uma multa de 75 dias à taxa de seis euros diários. Ditou que a violência doméstica não pode ser recíproca.

O acórdão não nega a possibilidade de agressões mútuas: “Pode haver casos em que um dos agentes cometa o crime de violência doméstica e o outro cometa qualquer outro crime – de ofensas corporais, de ameaças, de injúrias.” Admite até que haja casos em que “duas pessoas ligadas por particulares relações interpessoais, discutem, se insultam e agridem”, em resultado de tensão e conflito, “sendo os seus comportamentos equivalentes do ponto de vista da censurabilidade, não se alcançando qualquer posição de domínio de um sobre o outro, não se identificando, nem distinguindo um como vítima e o outro como agressor”. Isso, porém, segundo o acórdão, não se chama violência doméstica.

A juíza Maria Manuela Paupério explicou, nesse documento, que na violência doméstica há sempre “uma vítima e um vitimador, este numa posição de evidente dominação e prevalência”. A vítima sofre um processo de degradação. Já por isso lhe é concedido um estatuto especial que lhe confere, por exemplo, o direito à protecção, a um advogado (caso a situação económica e social o justifique) ou a uma indemnização.

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