Angela Merkel: "a mãe dos populismos" pós-2008?

São as forças políticas de perfil populista o maior foco de contrapoder. Como se chegou a esta situação?

1. A interrogação parece bizarra. Pela sua personalidade e percurso político Angela Merkel é uma líder do statu quo anti-populista. Nasceu e cresceu num ambiente austero, onde se combinava a "ética protestante" com o socialismo-comunista, à maneira da ex-República Democrática da Alemanha (RDA). O pai foi teólogo e pastor da Igreja Evangélica, uma igreja cristã protestante. Pelo lado materno tem ascendência polaca. Nas memórias familiares está a tragédia das populações alemãs — forçadas a emigrar, ou expulsas, do território que hoje é da Polónia —, pelas contingências das duas guerras mundiais. Tem formação científica. Estudou Física na Universidade de Leipzig, antiga Universidade Karl Marx. Foi investigadora no Instituto Central de Físico-Química da Academia das Ciências em Berlim Leste, onde se doutorou em química quântica. Nada fazia antever que chegasse à liderança da poderosa Alemanha reunificada.

2. Em 2005, Angela Merkel chegou a chanceler federal, sucedendo a Gerhard Schröder do SPD. Após a crise de 2008 ganhou, na política alemã e europeia, uma inesperada proeminência, superando até os gigantes políticos da CDU, Konrad Adenauer e Helmut Kohl. A alcunha de mutti (mãe), deu-lhe a imagem de uma benigna matriarca do povo alemão. Ironicamente, está a ser vítima do seu próprio sucesso e da hegemonia que conquistou na política germânica e europeia. A contestação mais forte não vem da esquerda tradicional de poder. Internamente, os sociais-democratas (socialistas) do SPD são dóceis parceiros de coligação. Externamente, a contestação dos partidos da esquerda de poder à sua liderança europeia sempre foi tíbia. São as forças políticas de perfil populista o maior foco de contrapoder. Como se chegou a esta situação?

3. Nos Estados (Länder) da federação alemã onde decorreram eleições no passado dia 13/03/2016 — Baden-Württemberg, Renânia-Palatinado e Saxónia-Anhalt —, foi visível a ascensão da Alternativa para a Alemanha (Alternative für Deutschland - AfD), especialmente neste último, um território da ex-RDA. Frauke Petry é o rosto mais mediático da AfD. Nascida em Dresden, no Leste, é uma química de formação, pela Universidade de Reading, no Reino Unido. O partido que lidera surgiu inicialmente como um movimento ligado à crise da Zona Euro e de oposição aos acordos de resgate à Grécia e outros países fortemente endividados. Mais recentemente — a generosa política de Angela Merkel, de abertura de fronteiras e acolhimento de refugiados / migrantes —, converteu-se na principal linha de contestação e de acção política da AfD. Coincidência, ou não, Dresden é também a cidade de origem do PEGIDA (em alemão Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente). A AfD de Frauke Petry, é a mais recente força política, de perfil populista, a ter significativo sucesso eleitoral no espectro político europeu. A Alemanha do pós-guerra não estava habituada a isso.

4. No influente diário alemão Die Welt, próximo da área política de Angela Merkel, as críticas foram duras. Um artigo de opinião assinado por Jacques Schuster, colunista-chefe do jornal, considera Angela Merkel a grande responsável pelo sucesso eleitoral da (extrema)direita populista. Para Jacques Schuster esta subtraiu o partido “de todos os seus princípios conservadores. […]. A CDU e o SPD deveriam saber o que estão a fazer [...] não deveriam ficar surpreendidos pelo facto de o eleitorado os ver, cada vez mais, como um único partido com dois rostos [Angela Merkel e Sigmar Gabriel] e uma chanceler que tomou as rédeas […]. O mesmo se pode dizer da CDU no seu próprio terreno. Escandaliza-se que tenha surgido a Alternativa para Alemanha não vendo que foi a sua maneira de actuar que a criou.” (Ver Jacques Schuster, “Alternativa para Alemania es hija de la CDU de Angela Merkel”, trad. esp., El País, 13/03/2016).

5. O populismo é uma perversão da democracia? A resposta é complexa. O termo é fluído e pode designar coisas bastante diferentes. Líquido é que no discurso político europeu tem uma forte carga negativa. A acusação de populismo procura descredibilizar adversários, usualmente conotados com a (extrema)direita — embora, na realidade, o populismo tanto pode existir à direita como à esquerda. Normalmente refere-se aos que usam uma retórica política com propostas irrealistas, de tipo demagógico, e/ou sem uma ideologia coerente e bem definida. É aplicado também àqueles que confrontam princípios e valores estabelecidos — vistos como sendo de elevado valor civilizacional e de uma sociedade decente —, invocando a vontade popular. Característica usual do populismo é procurar abarcar a generalidade do espectro político, fazendo aquilo que em língua inglesa se chama “catch-all”. Apela ao lado emocional das pessoas, jogando com os interesses, esperanças e medos da população em geral contra a elite dirigente.

6. Até agora, os partidos de populistas ou de protesto, consoante a perspectiva, não eram um problema da Alemanha. Angela Merkel tinha conseguido atravessar a turbulência da crise iniciada em 2008, sem ser atingida pelos estilhaços das políticas de austeridade que preconizou. A desagregação do tecido social, a descida de parte da classe média à pobreza e a radicalização política, eram um problema dos outros. Alguns emergiam à esquerda, ameaçando o tradicional establishment de poder — Syriza (na Grécia, que eclipsou o PASOK) e o Podemos (em Espanha, que ameaça seriamente o PSOE). Mas isso era um problema do Sul da Europa, indisciplinado e despesista. Já havia também sinais de um nacionalismo populista em crescendo, a Leste, de partidos como o Jobbik (Movimento por uma Hungria Melhor). Mas a Alemanha nada tinha a ver com isso. Agora, internamente, sobretudo nos Länder da ex-RDA, tem um laboratório político onde prova de problemas similares ao do resto do Leste europeu — a emergência de um populismo nacionalista de (extrema) direita. Se a AfD se tornar uma força política nacional, a excepção alemã termina. Estes são os "filhos revoltados" das crises gémeas da Zona Euro e dos refugiados.

Investigador

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