“Francisco”, escravizado 26 anos, morreu sem o seu caso chegar a julgamento

Viveu numa quinta no Alentejo, às mãos de um casal com dois filhos, privado de ter namoradas e sem nunca ganhar um tostão. “Francisco” morreu em Novembro. Só agora o DIAP está em vias de emitir um despacho que, tudo indica, deve ser de acusação.

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VERA MOUTINHO

Esteve escravizado às mãos de uma família portuguesa, no Alentejo, durante 26 anos. Morreu aos 65, a 3 de Novembro de 2015, sem o seu caso ir a julgamento. E sem ter alguém da família ao seu lado. “Francisco”, nome fictício, foi feito prisioneiro de um homem e de uma mulher, e dos seus dois filhos, acusados de não lhe pagarem qualquer remuneração pelo trabalho no gado e na agricultura numa quinta em Évora e de lhe retirarem os documentos de identificação durante 26 anos.

Recentemente, a Polícia Judiciária remeteu o inquérito com proposta de acusação do crime de escravidão ao Ministério Público. O Departamento de Investigação e Acção Penal de Évora está em vias de proferir um despacho final e, pela leitura do que está no processo, tudo indica que seja de acusação. Se assim for, segue-se o julgamento. O crime de escravidão é punido com pena de 5 a 15 anos. Segundo dados do Ministério da Justiça, houve 10 condenações por crimes de escravidão nos tribunais de primeira instância entre 2007 e 2013 - sendo que parte da informação está protegida por segredo estatístico quando o número de condenados é inferior a três. Os dados de 2014 e 2015 ainda não foram compilados, mas em 2014 o Tribunal de São João no Porto condenou 13 pessoas naquele que ficou conhecido até agora como o maior processo de escravatura em Portugal. No ano passado, deram entrada na Polícia Judiciária 14 inquéritos relativos a este crime (foram 16 em 2014 e 12 em 2013). 

“Em 26 anos nunca vi 5 tostões. Zero”, disse ao PÚBLICO em entrevista em Dezembro de 2013, três meses depois de ter escapado da quinta, ajudado por um amigo e pela GNR. Tinha um tumor nos pulmões, detectado logo quando foi acolhido. Até então não tinha recebido qualquer tratamento médico para a doença.

Além de não lhe pagarem e de lhe terem confiscado os documentos de identificação, os patrões privaram-no também de ter uma namorada ou de ter relações sexuais ao longo da sua vida adulta quase toda, acusava Francisco.

A patroa, Susana, tinha quase 60 anos, e o patrão, Fábio, quase 70 (nomes fictícios). Tinham dois filhos, rapazes, um nascido no início dos anos 1980, o outro em meados dessa década, agora também acusados do crime de escravidão. A Francisco davam apenas um dia de descanso, o domingo. Puseram-no a dormir num anexo da sua quinta em Évora.

Quando entrevistámos Francisco em 2013, o processo ainda estava em segredo de justiça e as informações, por uma questão de protecção, eram vagas. Francisco estava, na altura, aos cuidados da associação Saúde em Português, que gere um Centro de Acolhimento e Protecção a vítimas de tráfico de seres humanos do sexo masculino. Foi com eles que ficou até ao final da vida.

Agora, conseguimos verificar que a quinta onde viveu está a poucos quilómetros da cidade de Évora e não numa zona isolada como se poderia pensar. Fica num terreno onde se chega depois de percorrer uma curta estrada de terra batida, logo a seguir a uma creche para crianças, gerida por uma instituição católica – e muito perto de uma estrada de alcatrão onde passam vários carros e transportes públicos. A facilidade com que Francisco podia entrar e sair dali, fazer-se à estrada e andar nem uma hora até à cidade segundo o Google Maps, impressiona: mostra o medo com que vivia ao ponto de o paralisar e tornar incapaz de pedir ajuda. 

A casa de um andar, com uma arquitectura tipicamente alentejana, tem barracões à entrada que os patrões de Francisco alugavam a várias pessoas. É uma zona com bastante movimento, onde entram e saem carros – pelo menos no dia em que o PÚBLICO lá foi o portão não estava sequer fechado e o anexo que terá servido de quarto a Francisco estava a ser remodelado. Um jovem que disse ser trabalhador de uma das empresas que aluga os barracões respondeu-nos que não sabia se os patrões estavam em casa. Ninguém. Cá fora, alguns objectos deixados de lado, coisas que demonstram que a casa é habitada.

Sem luxo aparente, a moradia tem uma piscina, mobília modesta, escura, e vários motivos religiosos como crucifixos – vê-se numa reportagem fotográfica que consta do processo. É referido nos relatórios que o casal tinha bens suficientes para pagar a Francisco e que, no mandado de busca, foram apreendidas armas para as quais não tinha licença.

O casal e os filhos admitiram à PJ que nunca pagaram um salário a Francisco – justificaram a sua presença como a de alguém que era tratado como família, só que Francisco nem sequer comia à mesa com eles. Isto apesar de apresentarem várias versões diferentes, consoante as fases do processo, sobre o período durante o qual Francisco viveu com eles: à GNR, Autoridade para as Condições do Trabalho e Polícia Judiciária ora disseram que estava há 10 anos, ora que estava há quatro ou cinco. Um dos filhos do casal chegou a justificar que não lhe era pago nada por Francisco não ser responsável e gastar dinheiro em bebidas alcoólicas – informação que os testemunhos de quem tomou conta dele negam; à parte do tabaco, Francisco não tinha qualquer outra dependência, afirmam.

No processo refere-se que as idas de Francisco ao hospital foram raras, ou seja, apesar de doente a família não assegurava os cuidados médicos necessários. Um vizinho relata que a sua roupa era dada por ele e por outros amigos, que a alimentação que recebia dava apenas para um dia e que ele não tinha descanso. Consta ainda que era portador de uma deficiência mental ligeira que o tornava vulnerável, dependente de terceiros e com limites na percepção do perigo – porém, isso não afectava a credibilidade dos seus depoimentos, pois não tinha capacidade para criar cenários abstractos como os que estão nos autos.

Quando foi entrevistado pelo PÚBLICO, Francisco contou, de facto, que tinha apenas o domingo para dia de descanso. Sentava-se no quarto a ouvir a rádio, sobretudo os relatos de futebol. Aquela era a sua ligação com o mundo. À equipa do abrigo em Coimbra dizia “que a maior alegria da sua vida tinha sido ver um jogo de futebol entre a Académica de Coimbra e o Benfica, onde pôde apreciar o movimento e paixão em torno do Benfica”.

Nunca teve férias. Trabalhou sempre sem horários. Levantava-se, no Verão, às 5h30 para regar a horta, antes de o calor tornar a tarefa impossível de suportar. Geralmente, acabava o dia já depois de o sol se pôr, às vezes perto da meia-noite, se o patrão precisasse dele, contou. Nunca conseguiu dizer que não trabalhava. “Custava-me sentar e não trabalhar”, desabafava. Não ia ao café, estava sempre na quinta. Pela rádio, nunca ouviu histórias parecidas com a sua, nunca ouviu uma notícia que o inspirasse a pedir ajuda. Mas um dia lembrou-se: “Estou a ficar velho, com 63 anos [em 2013]. Um dia não posso trabalhar e botam-me para fora. Isso foi do que me lembrei. Botam-me para fora.” 

Depois de várias tentativas, conseguiu finalmente que um amigo fizesse queixa anónima à GNR. A guarda veio, e os patrões ainda tentaram escondê-lo, mas ele escapou – e iria enfrentá-los com a protecção da GNR. Nesse momento, quando um dos patrões disse às autoridades que os documentos de identificação de Francisco tinham ardido num incêndio, ele levantou a voz e chamou-lhe mentiroso – quem o conheceu percebe que deve ter sido das poucas alturas que o fez daquela maneira.     

Irmã no Algarve, tios no Norte
Quando chegou a Portugal em 1975, Francisco foi para Figueira de Castelo Rodrigo (Norte), a terra onde chegou com familiares. Trabalhou para um patrão, sempre a receber ordenado – e até foi aumentado, contou ao PÚBLICO. “Entrei com 5 contos. Depois o meu patrão disse-me: ‘Oh, vou-te aumentar mais um bocadinho, estás a trabalhar bem.” Passou a oferecer-lhe 12 contos. “Eu disse ‘obrigado’”, contou-nos na altura, orgulhoso. Mas 11 anos depois esse tal patrão convenceu-o a ir para o Sul com a irmã e o cunhado.

A tia de Francisco, o marido dela e um dos irmãos, que ainda vivem em Figueira de Castelo Rodrigo, perderam-lhe o rasto desde que abandonou a vila, disse agora o tio, Eduardo, ao PÚBLICO.

Eduardo (nome fictício) contou que há muito tempo que o sobrinho não ia a Figueira de Castelo Rodrigo – a última vez terá sido há uns 15 ou 20 anos para o funeral de um tio, mas não se lembra de ter alguma vez referido a situação em que vivia. A tia está doente, segundo Eduardo, e não quis falar quando ligámos – passou logo o telefone ao marido.

“O cunhado do patrão ainda vive aqui”, disse Eduardo. “Ele aqui era maltratado também – até porrada lhe davam”, denuncia. Mas nunca fez queixa da situação. “Estava bem na vida em Angola e vim para Portugal com a roupa do corpo, não tinha conhecimento de nada… Os patrões desse que faleceu [Francisco] faziam o que queriam das pessoas. Principalmente dos mistos, filhos de branco com preto, faziam pior, faziam deles escravos.” O outro irmão que vive em Castelo Rodrigo, Victor, nome fictício, nunca mais falou com Francisco, segundo Eduardo.

Há ainda uma irmã, que vive no Algarve, e que falou com Francisco ao telefone quando ele estava em Coimbra, já protegido, mas nunca chegou a ir vê-lo. “Não fomos criados juntos”, disse ao PÚBLICO Luísa, também nome fictício, que vive em Portugal desde os 16 anos e fala regularmente com os tios de Castelo Rodrigo. “Não convivi muito com ele. Mal o conheci”, explica.

Os dois eram filhos de mães diferentes, e terão crescido em zonas distintas de Angola. Luísa diz que o viu uma única vez em Portugal, isto há mais de 30 anos, e que estiveram juntos nem uma hora. Julgava-o na Alemanha. Perdera-lhe o rasto até um agente da Judiciária lhe ligar a contar o que se passara, diz. Depois disso, de vez em quando alguém do abrigo em Coimbra fazia a ligação telefónica – “mas foram muito poucas vezes”. Conversaram sobre o estado de saúde de Francisco. Da última vez, Francisco pediu a Luísa para o ir visitar – mas vivendo no Algarve, e sendo empregada de hotelaria, Luísa diz que não tinha condições para se deslocar a Coimbra.  

A Francisco não restava mais ninguém. Apenas a Saúde em Português, abrigo onde passou os últimos dias. O julgamento era um assunto que se recusava a abordar, diz a equipa da Saúde em Português por email, “muito provavelmente como consequência de distúrbio de stress pós-traumático sofrido com a escravidão a que esteve sujeito”.

Acrescentam: “Atendendo à sua bonomia, à sua história de vida e ao seu estado de saúde débil, sempre houve um cuidado e uma atenção especial” para com Francisco. “Dada a sua forma de ser e estar na vida com um sorriso sempre pronto, deixa-nos a memória de um ser muito humano, lutador, que passou por muito mas que se conseguiu libertar das amarras da escravatura”. A associação lamenta que Francisco não tenha tido “o usufruto dos direitos humanos que merecia em vida”.

Apesar de tudo o que lhe aconteceu, Francisco, um homem de estatura pequena, soltava um riso profundo. Se soubesse que o seu caso estará prestes a ir a tribunal, talvez desse uma das suas sonantes gargalhadas. 

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