Não deve haver tabus para a memória

Tão longe e tão perto: o escritor chinês Liu Xinwu viveu a Revolução Cultural, o escritor português Rui Zink viveu o 25 de Abril. Ambos defendem que se lute contra o esquecimento e têm ideias sobre o papel da literatura nisso.

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Liu Xinwu abordou nas suas memórias um tema-tabu na literatura chinesa: Tiananmen EDUARDO MARTINS
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A sessão Escritores em Revolução: A Revolução Cultural e a Revolução dos Cravos juntou Liu Xinwu ao português Rui Zink EDUARDO MARTINS
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A plateia da sessão encheu-se, sobretudo de chineses EDUARDO MARTINS

Um escritor chinês, Liu Xinwu, que publicou em 1977 o romance The Class Teacher, considerado precursor da “Scar Literature”, a literatura das cicatrizes  a corrente literária chinesa que explora os traumas da Revolução Cultural. E um escritor português, Rui Zink, cujo primeiro romance, Hotel Lusitano, publicado em 1987, fala do 25 de Abril. Seria um encontro bastante improvável se os dois não tivessem sido convidados pelo Festival Literário de Macau para discutir o tema Escritores em Revolução: A Revolução Cultural e a Revolução dos Cravos.

E se o humor desarmante de Rui Zink é já conhecido em Macau – é a segunda vez que é convidado por este festival, esteve cá em 2013 –, Liu Xinwu não lhe ficou atrás. O escritor chinês de 73 anos, natural de Chengdu, Sichuan, é também autor de Four Decorated Archways, que lhe valeu o segundo lugar do Prémio Shangai Novel, e das memórias Je suis né un 4 juin, editadas em França na Gallimard, onde aborda um tema que é tabu na literatura chinesa – os acontecimentos na Praça Tiananmen, em 1989. Quebrar esse tabu trouxe-lhe alguns problemas (já havia deixado de ser editor na revista People’s Literature e passou a dedicar-se inteiramente à escrita dos seus livros), mas não o abalou. Continua a defender fortemente que não deve haver temas interditos quando se trata da memória, como aliás defendeu durante a sessão.

“Não há nenhuma revolução na China relacionada com flores”, disse Liu Xinwu durante a conversa com Rui Zink, moderada por Yao Feng, um dos sub-directores do festival. “Costumamos relacionar as revoluções com sangue, não com flores como os cravos”, acrescentou. E Rui Zink, com o seu humor, lembrou que ambos “têm a mesma cor”, os cravos e o sangue. O que deu azo a outro desejo de Liu Xinwu: “Porque é que não adoptamos esta maneira gentil de fazer revoluções? Talvez possamos ter uma revolução com o nome de um pássaro."

“Isto prova que podemos usar as mesmas palavras para dizer ou fazer coisas completamente diferentes” defendeu Rui Zink. “É claro que podemos fazer isso com todas as palavras, até com a palavra ‘amor’. Um homem diz a uma mulher que a ama e beija-a. Mas um homem também pode dizer a uma mulher que a ama ao mesmo tempo que a esfaqueia até à morte. Com a mesma palavra. Quando John Lennon foi assassinado em Central Park, em Nova Iorque, o assassino disse-lhe: ’John, I love you’."

Cicatrizes

O escritor português esgravatou as diferenças, explicando o 25 de Abril a uma plateia cheia, sobretudo de chineses: "Revolução Cultural, para mim, significa matar, matar a mente. Pelo contrário, a Revolução dos Cravos representa o abrir da mente. A revolução de 1974 acabou com a ditadura e os presos políticos foram libertados. Foi bonito. Eu tinha 13 anos; por essa altura, no meu país, se os pais têm dinheiro dão aos filhos uma bicicleta, dinheiro, talvez um pónei. O meu país deu-me uma revolução. É um país muito generoso. Obrigado, obrigado, obrigado!” Gargalhadas na sala do Edifício do Antigo Tribunal de Macau, onde o festival está a decorrer até 19 de Março.  

Rui Zink contou ainda que a vida da sua familia sob a ditadura foi particular. O avô foi preso sem nenhuma explicação. “Era forte e saiu da prisão com a mente em perfeitas condições. Mas a minha avó [não teve a mesma sorte], ficou psicologicamente doente. O meu avô passou o resto da vida com uma mulher louca. A minha mãe teve de impedir a minha avó de se matar e eu cresci com isto.” Por isso, explicou, quis abordar no seu primeiro romance o tema da revolução portuguesa. E de novo o 25 de Abril explicado aos chineses: "Foi uma coisa muito romântica, apesar de não ter sido perfeita e de ter havido vítimas. Há sempre vítimas quando acontecem mudanças sociais, mas acho que o balanço final foi positivo."

Pouco tempo depois se percebeu como há diferenças culturais. Talvez sem o saber, Rui Zink terá ido longe de mais na sua confissão, pois o moderador sentiu necessidade de explicar ao autor português que na China as pessoas não costumam falar das experiências da suas famílias tão despudoradamente em público. 

Quando alguém da plateia perguntou em inglês a Liu Xinwu, na qualidade de representante da “Scar Literature”, como vê agora esse movimento e se ainda tem influência entre os jovens chineses, ele agradeceu a pergunta: “Se tiverem nascido depois de 1980 talvez ainda saibam alguma coisa, mas se nasceram em 1990 ou depois de 2000 os jovens não sabem nada sobre a Revolução Cultural. Não fazem ideia nenhuma. Acho uma pena."

Não deixa de tentar lutar contra isso: quer continuar a propor uma reflexão sobre a revolução cultural no seu trabalho literário, tentar passar a sua experiência pessoal para os seus leitores. “Mas os meus esforços são individuais, são limitados, porque os jovens têm as suas preferências em literatura e não são essas. Temos na China muitos romances desenvolvidos na Internet. Os jovens chineses não lêem livros impressos, lêem on-line. Temos muitos escritores famosos que actualizam as páginas com dez mil palavras por dia, mais focados nos romances de fantasia com universos mágicos ou relacionados com artes marciais e que não têm nenhuma relação com a vida real”, acrescentou o escritor, defendendo uma escrita realista como alternativa ao escapismo da nova geração de leitores. “Não tenho nada contra, mas gostava de atrair mais jovens para o meu trabalho, porque é muito próximo da vida real. Ainda estou a trabalhar nisso, sou muito determinado como indivíduo. Acho que se um indivíduo perde a memória é mau, mas se uma nação perde a memória é terrível, é uma desgraça, é inimaginável, é inaceitável. Que acabem as fronteiras na nossa memória." 

O PÚBLICO viajou a convite do Festival Literário de Macau – Rota das Letras

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