À procura de HHH

Hou Hsiao-Hsien é um cineasta de uma ilha distante, Taiwan, que pelos seus filmes se nos tornou muito próximo. Mas perante A Assassina dir-se-ia que ele paira algures, num filme tão visualmente deslumbrante como gélido.

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O taiwanês Hou Hsiao-Hsien ou, como é conhecido, só pelas iniciais, HHH (a sua pequena oficina de produção designa-se de resto 3H), é um dos maiores cineastas contemporâneos, autor de um punhado de obras-primas como Tempo para Viver e Tempo para Morrer (1985), Poeira no Vento (1986), City of Sadness (1989), O Mestre de Marionetas (1993) e Flores de Xangai (1998).

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Hiao-Hsien, um cineasta de uma ilha distante, Taiwan, que se tornou um dos maiores do cinema contemporâneo Xavier Torres-Bacchetta/Corbis Outline

Depois de uma estreia portuguesa de Tempo para Viver e Tempo para Morrer, no princípio dos anos 90, que não teve continuidade, os seus últimos filmes, Três Tempos (2005) e O Voo do Balão Vermelho (2007), chegaram às salas portuguesas. Acrescendo agora A Assassina, é pouco para uma obra que ao longo de 32 anos conta 14 filmes, a partir de Os Rapazes de Fengkuei (descontando os três primeiros títulos, feitos ainda internamente à indústria), mas, ainda assim, Hou Hsiao-Hsien é um cineasta notório, reconhecível e reconhecido – acresce que na Culturgest em 2007 lhe foi dedicado um ciclo (que eu próprio programei) e houve algumas difusões televisivas; salvo erro, apenas um dos títulos da fase inicial, A Filha do Nilo, permanece desconhecido em Portugal – é, aliás, o mais decepcionante, como o próprio HHH reconhece.

Para além da estrita pertença, o que significa ser “cineasta taiwanês”? Pelo menos até à geração de Hou Hsiao-Hsien, e mesmo ainda depois, isso acarreta não só uma história particular mas, mais genericamente, e de modo muito acentuado, a História.

Recordando
HHH nasceu em 1947, em Cantão, na China continental. A sua foi uma das centenas de milhares de famílias que em 1949, quando da vitória dos comunistas e da proclamação da República Popular da China, seguiram a fuga dos “nacionalistas”, do Kuomitang de Cheng Kai-Check, para a ilha de Taiwan (por vezes ainda referida pelo nome que os portugueses lhe deram, Formosa), mantendo a designação de República da China.

Note-se que além das particularidades desde logo suscitadas pela sua situação insular, Taiwan tinha uma história própria, motivada pelo domínio japonês de 60 anos (1895-1945). E a partir de 1949, se na China continental vigorava – e vigora – a ditadura comunista, em Taiwan havia a ditadura do Kuomintang e de Cheng Kai-Chek, sob lei marcial, só banida em 1987. Em particular os primeiros anos da ditadura foram de uma feroz repressão, o “Terror Branco”, numa paranoia persecutória de todos os supostos simpatizantes comunistas. Foi o quadro desta História específica que levou Hou Hsiao-Hsien a um empreendimento do maior vulto, a “Trilogia de Taiwan”, City of Sadness/ O Mestre de Marionetas/ Good Men, Good Women.

O cinema de HHH, considerado no seu conjunto, está pois decisivamente marcado pela História. Mas também pela história pessoal, pela experiência geracional e vivencial, pela autobiografia. De algum modo a sua obra cinematográfica é, numa elaboração pessoalíssima, uma consequência da própria história de Taiwan nestes últimos 70 anos: um percurso particular mas também ainda depositário da milenar história da China.

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A Assassina

A tradução literal do título de Poeira no Vento é “As passadas coisas da infância. Recordando com nostalgia o caminho da vida”. “Recordando” – no cinema de HHH recorda-se, recorda-se um percurso pessoal e/ou geracional (crescer em Taiwan), a História do país mas também, mais ocasionalmente é certo, a História geral da China.

Descontado o filme anterior, o exógeno O Voo do Balão Vermelho, feito em França e com Juliette Binoche (que ainda assim tinha como ponto de partida a memória de infância de ver um filme, Le Ballon Rouge de Albert Lamourisse), só três filmes de HHH, feitos em 1996 e 2003, isto é, num período específico, Goodbye South, Goodbye, Millenium Mambo e Café Lumière, são rigorosamente contemporâneos no sentido de ausência de uma memória, olhando em concreto para a juventude do presente – gesro que, ainda assim, é o da perspectiva sobre “o caminho da vida”, e desse modo, contraponto aos caminhos e vivências da infância, adolescência e juventude, nos primeiros filmes, ou a esse outro percurso que é a História de Taiwan na trilogia.

Só o maravilhoso Flores de Xangai é (era) um caso à parte, evocação dos bordéis de Xangai no século XIX, ainda assim formalmente logo reconhecível como “um filme de Hou Hsiao-Hsien”. E, de resto, o antepenúltimo filme, Três Tempos, ao agrupar segmentos em diferentes épocas, é de algum modo síntese do seu cinema.

Já vai longo o conhecimento ocidental do autor, desde que em 1983 e no ano seguinte, no então fundamental Festival des Trois Continents em Nantes (França), descobrimos Os Rapazes de Fengkuei e Um Verão com o Avô. Já fizemos um longo percurso no tempo com HHH, e de há muito conhecemos “o seu tempo”, o modo como o tempo transcorre no seu cinema, designadamente na mestria esplendorosa dos planos-sequências.

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Sucede que muito tempo, oito anos, mediaram entre O Voo do Balão Vermelho e A Assassina, lapso que, para além das obrigações pessoais de HHH, cidadão muito empenhado, se deve à desmesura do projecto, sem paralelo em nenhum filme anterior, nem nos da Trilogia de Taiwan, com as dificuldades que isso acarretou na pré-produção e na pós-produção sobretudo, e mesmo na própria rodagem, feita em locais muito diversas.

Sabres e punhais
Eis pois A Assassina e eis-nos surpresos e mesmo perplexos: este é “um filme de HHH” de todo diferente, pela primeira vez um filme de “género”, o wu xiao pian, ou simplesmente wu xiao, isto é, de espada, mais usualmente sabres e punhais – havendo todavia a notar que o “wu xiao” é um género em geral, designadamente literário, e não apenas cinematográfico. Mas é um wu xiao contido, limitado nos seus atributos espectaculares, em nada replicando as esplendorosas obras-primas, A Touch of zen e Raining on The Mountain, do mestre maior do género, King Hu.

A atração pela tradição do wu xiao não é inédita em realizadores de mais recentes gerações. Ann Hui e Wong Kar-Wai, ambos de Hong-Kong já o tinham abordado respectivamente em The Romance of Book and Sword e Ashes of Time, por diferentes razões dois desastres (embora tenha uma grata memória do primeiro o qual, todavia, tendo sido a primeira produção de Hong-Kon na República Popular, foi tremendamente difícil e um insucesso), além de que Tsui Hark, como realizador e produtor, combina o género, e histórias de fantasmas, com efeitos especiais.

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Em A Assassina as cenas de combate são, como é atributo do género, cruciais, mas distendidas, sem a rapidez e a intensa montagem que existe nos filmes de King Hu, e também sem as muito distintivas acrobacias, como os saltos mortais em que se sobe às árvores. A Assassina também não é um mero wu xiao reciclado, como O Tigre e o Dragão de Ang Lee ou Herói e O Segredo dos Punhais Voadores de Zhang Yimou. HHH “não faz apenas” um filme de género ou “à lá”. Mas então faz o quê?

“Estou fascinado pela dinastia Tang há dois anos e adoraria fazer um filme de capa e espada passado nessa época (cerca dos séculos VII e VIII). Gostaria de provar que posso explorar o espaço e o tempo de uma forma diferente do que fiz até agora” – isto disse HHH a propósito de A City of Sadness, isto é, em 1989, em declarações em que aliás não deixava de reiterar: “dada a minha idade e o meu passado, sinto uma certa responsabilidade face à jovem geração, a de continuar a explorar a história de Taiwan”.

Quer isto dizer que ele foi postergando um projecto e que o tempo de espera por A Assassina não foi “apenas” oito anos, mas sim 28! É muito, muito tempo e, de novo, como tão caracteristicamente sucede em HHH, há o reenvio para uma memória.

Só que…

Só que, sejamos claro, perante A Assassina nada, ou quase nada, poderemos reconhecer como sendo de “um filme de HHH”. Sim, há algum parentesco, mas vago (só por serem ambos “filmes de época”) com Flores de Xangai, e sim, evidentemente (isto é, impondo-se como uma evidência), a mestria dos movimentos de câmara, dos planos-sequências. Mas, obra de uma esplendorosa beleza plástica, A Assassina é também um filme estranhamente gélido, quando no cinema de HHH sempre ocorre a proximidade com as personagens, o modo como ele nos faz, aos espectadores, “íntimos” delas.

É óbvio o interesse do autor pela história de Nie Yinniang, a aristocrata educada por uma monja para ser assassina e matar o governador Tsian Ji’an e que prefere demonstrar-lhe que o pode matar sem consumar o acto, na sugestão mesmo de uma intrigante love story (Shu Qin e Chang Chen, actores habituais de HHH, são os intérpretes). Não menos patente se torna agora em concreto que só algo de fascínio pelo período da dinastia Tang (618-907) podia conduzir HHH a realizar um filme como A Assassina.

Mas enquanto no seu cinema há usualmente uma consumada arte do subentendido, e do emocionalmente subentendido, neste caso há uma entropia, como se houvesse por um lado lapsos na narrativa (há a estranha a sensação de em 1h45 de duração estarmos perante um “condensado” de uma ficção que exigiria mais tempo para ser devidamente inteligível e efectivamente “tocante”) e por outro lado episódios espúrios (como a menstruação simulada da mulher do governador).

Hou Hiao-Hsien é um cineasta de uma ilha distante, Taiwan, que pelos seus filmes se nos tornou muito próximo. Mas perante A Assassina dir-se-ia que ele para algures, num filme tão visualmente deslumbrante como gélido.

Ao longo de mais de 30 anos fomo-nos habituando à procura de HHH, esperando novos filmes e encontros. Agora procuramo-lo por outra razão: em A Assassina onde “está” ele?

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