Nas ruas “a revolução pacífica continua até ao derrube de Assad”

Os sírios começaram por pedir liberdade e justiça e ainda é isso que exigem, com faixas e canções, aproveitando o balão de oxigénio da trégua. Regime está em Genebra sem admitir saída do ditador.

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Ruas de um bairro de Alepo cheias de manifestantes a 11 de Março Abdalrhman Ismail/Reuters

Os sírios aproveitaram a trégua em vigor desde 27 de Fevereiro para voltar a viver. A acreditar no que tem acontecido em dezenas de cidades e vilas, viver, para muitos dos que sobreviveram à carnificina ainda quer dizer sair à rua em protestos pró-democráticos.

No dia em que representantes da oposição e do regime voltaram a Genebra para se reunir com o enviado da ONU, Staffan de Mistura, para o que este descreve como “momento da verdade”, vale a pena olhar para o que aconteceu pela Síria nas últimas duas semanas e meia. Até porque Governo e opositores continuam sem se entender sobre o que significa “transição”, com o primeiro a insistir num “governo de unidade” que se abra para lá do Partido Baas de Bashar al-Assad e os segundos sem conceber qualquer futuro com Assad.

“Há cinco anos ninguém teria imaginado que este conflito teria chegado aqui. Mas talvez agora tenhamos uma oportunidade para pôr-lhe fim”, disse o diplomata escolhido pelas Nações Unidas depois de Kofi Annan e Lakhdar Brahimi terem atirado a toalha ao chão.

No fim do mês passado entrou em vigor a primeira trégua de sempre nestes cinco anos. Uma “cessação de hostilidades” acordada por dezenas de grupos armados, entre os que apoiam Assad e os que o combatem, que envolveu a Rússia e o Irão, assim como os aliados ocidentais da oposição, e excluiu grupos terroristas (o autodesignado Estado Islâmico e a Frente al-Nusra, considerado o braço da Al-Qaeda na Síria.

Na prática, a violência diminuiu de forma muito significativa na Síria sob controlo de Assad e dos grupos da oposição como o Exército Livre da Síria. A aviação síria e russa puseram fim aos bombardeamentos e em cidades de províncias como Alepo (Norte), Idlib (Noroeste) ou Deraa (Sul), as bombas deixaram de se ouvir pela primeira vez em anos. Ajuda alimentar chegou a pessoas há meses sob cerco, como as que vivem em várias vilas nos subúrbios de Damasco.

As populações aproveitaram para respirar. E voltaram a organizar protestos. À sexta-feira, a lembrar os tempos em que os Comités Locais da Revolução organizavam votações em todo o país para escolher o slogan de cada semana, até voltou a haver slogan único para a Síria. “A revolução continua”, foi o lema de 4 de Março.

“Um cessar-fogo é um cessar-fogo; a nossa revolução pacífica continua até derrubarmos Assad e impormos justiça para toda a Síria”, escreveram em inglês, numa grande faixa, os habitantes de Maraat al-Numan, cidade controlada pelo Exército Livre na província de Idlib. Foi uma das 104 manifestações de 4 de Março contabilizadas pelos Comités.

Para além das redes sociais, os protestos não têm sido muito divulgados, como se já não coubessem nas narrativas actuais.

Acto admirável

Até os activistas tiveram alguma dificuldade em reagir. “Há uns dias aconteceu algo extraordinário. Foi tão impressionante, tão doido, que eu não sabia o que escrever. Vamos tentar: na segunda-feira, o povo de Alepo, que sofreu anos de bombardeamentos diários, ergueu-se outra vez. Homens, mulheres, crianças, praticamente cercados pelo Estado Islâmico, pelas [forças curdas] YPG e por forças aliadas a Assad, saíram em manifestações massivas. E a sua exigência é simples: queremos a queda do regime”, escreveu no Facebook, logo a 29 de Fevereiro, Kenan Rahmani, nascido em Damasco e hoje a estudar Direito nos Estados Unidos.

“Não pediram comida. Nem sequer pediram o fim da guerra. Não pediram forças terrestres para combater os jihadistas. Pediram o fim do regime brutal, opressivo e tirânico de Bashar al-Assad”, continuou Rahmani.

Uns dias depois, em antecipação da segunda sexta-feira de trégua, o jornal britânico The Guardian notava em editorial este “desenvolvimento pouco noticiado” que “lembra que a crise síria começou por ser uma revolta popular contra um ditador, um clã familiar que está no poder há décadas e um sistema de segurança cuja doutrina central tem sido espalhar o terror”. Depois de cinco anos de uma guerra que obrigou metade da população a fugir de casa e provocou 300 a 470 mil mortos, “o simples gesto de sair à rua com exigências políticas persistentes surge como um acto admirável de resiliência”.

Os sírios não deixaram de se manifestar quando as forças de Assad disparavam contra eles e mesmo depois de anos de cercos, ataques químicos, bombas e mísseis de todos os tipos, exílio e desespero, no que o Guardian chama “uma política estatal de assassínio em massa numa escala sem precedente nos tempos recentes”, a juntar aos grupos jihadistas que tomaram partes do país e aos bombardeamentos externos. “A coragem dos protestos tem de ser reconhecida. E a sua mensagem ouvida.”

 

 

 

 

 

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