Beethoven fulgurante!

A partir de agora não escutaremos do mesmo modo as Quarta e Quinta Sinfonias de Beethoven.

Foto
Com Nikolaus Harnoncourt uma interpretação afigura-se como uma “reinvenção” Leonhard Foeger/reuters

Há 25 anos Nikolaus Harnoncourt realizou com a Orquestra de Câmara da Europa, em instrumentos modernos portanto, uma integral das Sinfonias de Beethoven que logo se tornou uma referência incontornável. Agora surgiu de novo, com a Quarta e Quinta Sinfonias, mas com o “seu” Concentus Musicus, em instrumentos de época. Veio a ser o seu último disco, pelo menos o último publicado em vida.

Há um esclarecimento que se impõe; na elaboração da lista das escolhas de 2015 já figurava este disco, mas tratava-se de um lapso: o exemplar de promoção tinha afinal chegado invulgarmente cedo sem informação sobre a data de saída, que foi só agora, e o disco é como tal de 2016. À escuta, então, fiquei literalmente “fulminado” por esta “re-interpretação”, que vem alterar o nosso entendimento da obra. Mas as sucessivas audições entretanto mais me têm subjugado, e não tenho neste momento dúvidas em afirmar que esta é uma “gravação histórica”, uma das mais extraordinárias alguma vez dedicadas a Sinfonias de Beethoven.

No momento em que incluíamos este disco nos “melhores de 2015” não sabíamos que dias antes, a 5 de Dezembro, o maestro austríaco tinha anunciado a sua retirada. A morte ocorreu exactamente três meses depois, e é seguro que doravante teremos sempre presente este como “o último disco” de Harnoncourt.

Se essa é uma circunstância inevitável o que mais importa é a excepcionalíssima interpretação — e Harnoncourt sempre sublinhou que nunca há duas interpretações exactamente idênticas - que nos subjuga como uma daquelas em que uma interpretação, no mais exacto sentido do termo, se nos afigura uma “reinvenção” — nunca tínhamos escutado estas obras assim.

Nem se pode dizer que a concepção interpretativa tenha mudado muito em relação à abordagem de há 25 anos — enfim, muda de algum modo na Quinta Sinfonia, e, genericamente, os contrastes são mais acentuados. O que completamente muda com os instrumentos de época é a sonoridade, e com isso vêm alterações de articulação e de fraseado. Assim ouvimos uma Quarta de densidade ímpar, que Harnoncourt “arranca” àquele lugar-comum de a considerar como uma sinfonia menor (face à Terceira, Quinta, Sexta, Sétima e Nona), e uma Quinta de caracter marcadamente marcial, sobretudo no último andamento, que nos coloca mesmo numa interrogação: e se mais que a Terceira Sinfonia, que assim é propriamente designadamente, fosse sim esta a Eroica?

Para isso é fulcral a sonoridade dos metais, todos “naturais”, um dos elementos mais marcantes de uma total reinvenção das cores — ah, os diálogos entre as madeiras”! E depois, com essa riqueza de detalhes, há uma eloquência global ímpar, como se todo o desenrolar musical fosse inelutável. Que esplendor!

Perante poucos, muito poucos discos, pomemos ter logo o sentimento de ser verdadeiramente “histórico”. Este é um deles. O “último disco” de Harnoncourt é assombroso, deveras transcendente! A partir de agora não escutaremos do mesmo modo as Quarta e Quinta Sinfonias de Beethoven.

Sugerir correcção
Comentar