Ficar ou sair da UE, um embate entre dois mundos paralelos

Iniciada a campanha, é a economia que centra o debate. País vai ficar mais rico ou mais pobre, querem saber os indecisos. Governo faz previsões sombrias sobre consequências da saída, apoiantes do “Brexit” acreditam num “futuro muito brilhante” para o país fora da UE.

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Dylan Martinez/Reuters

A campanha para o referendo à permanência do Reino Unido na União Europeia será longa, por vezes feia e, como mostram as primeiras semanas, travada entre campos que parecem viver em duas realidades diferentes. Sair, avisa o primeiro-ministro britânico, será um “salto no escuro” que ameaçará a segurança e a prosperidade do país. Ficar, alegam os partidários do “Brexit”, é perder a oportunidade histórica de recuperar a soberania e cortar amarras com uma União em risco de colapso. Com milhões de eleitores indecisos, a batalha até 23 de Junho será travada com avalanchas de números e previsões mais ou menos realistas, num jogo em que o medo pode ter um papel decisivo.

Os referendos são exercícios imprevisíveis, como provou a Escócia em 2014, quando, contrariando as previsões feitas à partida, a independência pareceu prestes a sair vencedora. Mais ainda quando a pergunta no boletim de voto é sobre a UE, instituição complexa e distante, pela qual boa parte dos britânicos nunca nutriu grande entusiasmo. Os únicos sentimentos fortes que desperta são, aliás, de sentido contrário, alimentados por um encarniçado grupo de eurocépticos que é hoje força dominante no Partido Conservador britânico. 

Não espanta, por isso, que as sondagens mostrem que há uma enorme fatia de indecisos - algumas referem que 20% dos eleitores não sabe ainda como vai votar, outras sugerem que a percentagem será ainda maior. Mas o que os estudos de opinião também indicam é que, chegado o momento de decidir, os britânicos vão de novo olhar para a carteira, como o fizeram nas legislativas de 2015. “Sair da UE vai deixar-nos, a mim e ao país, mais ricos ou mais pobres?”, questionava-se Deborah Hastings, uma eleitora de 57 anos da região de Devon, no sudeste de Inglaterra, resumindo à Reuters aquilo que vai guiar a sua decisão no momento em que se dirigir à mesa de voto.

“Apesar de muitos eleitores indicarem a imigração ou o acesso [dos imigrantes] aos benefícios sociais como a sua principal preocupação, no final é a economia que se torna dominante”, explicou à agência de notícias Ben Page, presidente da empresa de sondagens Ipsos Mori. “As pessoas mencionam muitas coisas, mas em última análise tudo se resume à pergunta ‘vou manter ou perder o meu trabalho?’”. 

Talvez por isso pouco se tem notado a presença de Nigel Farage, o líder do Partido da Independência do Reino Unido (UKIP), que venceu as eleições europeias de 2014, cavalgando o sentimento anti-imigração que se instalou no país perante a chegada, na última década, de perto de dois milhões de trabalhadores do Sul e Leste da Europa. Em seu lugar, surgiram rostos do “mainstream”, ministros, deputados e o inimitável Boris Johnson, mayor de Londres e eterno candidato à sucessão de David Cameron no Partido Conservador e no Governo - uma transição que será acelerada se o primeiro-ministro perder o referendo.

É deles que parte agora o ataque aos fracassos da UE, à tibieza dos resultados das negociações com Bruxelas concluídas por Cameron na cimeira de Fevereiro, à zona euro de que Londres não faz parte e que é acusada de querer minar a City londrina. E é a eles que Cameron faz mira quando acusa a campanha contrária de “fazer adivinhação” sobre o que implicaria deixar a UE.

“Para aqueles que defendem a saída, a perda de empregos e os danos na economia podem ser danos colaterais, ou um preço que vale a pena pagar. Para mim, não são. Não há nada mais importante do que proteger a segurança financeira dos britânicos”, disse o primeiro-ministro na última quinta-feira, repetindo que só a permanência garante que o país “ficará mais forte, mais seguro, mais próspero”. Respondia a Boris Johnson, que na véspera tinha dito que os efeitos do divórcio com Bruxelas na economia seriam “como o logótipo da Nike”, um “período inicial de deslocação e incerteza”, mas logo “seguido de uma melhoria muito rápida”.

As declarações caíram mal entre os adversários, que a cada previsão oficial do Governo sobre os impactos negativos da saída acusam Cameron de ressuscitar o “Projecto Medo”, como ficou conhecida a estratégia de campanha para convencer os escoceses a não arriscarem a independência. “Ignorem os pessimistas e os mercadores da desgraça”, respondeu Johnson na sexta-feira, acusando a campanha pela permanência na UE de “subestimar” a capacidade do país para sobreviver fora de uma instituição que é um “anacronismo”, um “sorvedouro de dinheiro e que subverte a democracia”.

Uma e outra vez, o Governo - que desde o acordo com Bruxelas assumiu oficialmente a defesa da permanência na UE - dispara advertências destinadas a accionar o máximo de alarmes na cabeça dos eleitores: a saída porá em risco três milhões de postos de trabalho, põe em causa os direitos dos dois milhões de britânicos que residem noutros Estados-membros, obrigará os agricultores a gastarem milhões de libras por ano para exportarem os seus produtos para a UE até que novos acordos comerciais sejam assinados, o que poderá criar “uma década de instabilidade” com consequências imprevisíveis para a economia.

Alertas que as grandes empresas, os gigantes da finança londrina, as instituições internacionais e até alguns parceiros europeus têm repetido, depois do silêncio que marcou os meses de negociações com Bruxelas. A saída da UE teria um impacto imediato no crescimento, na força da libra e levaria muitas empresas a trocar a City por praças que lhes dessem garantias de acesso ao mercado único, avisou na última semana o governador do Banco de Inglaterra, Mark Carney. Catherine Mann, economista-chefe da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), acrescentou que a ruptura “seria má para o Reino Unido, para a Europa e para a economia global” e o impacto não se limitaria aos dois anos previstos no Tratado de Lisboa para consumação do divórcio. 

O Financial Times recordava, em Fevereiro, que esta não é a primeira vez que estas profecias se fazem ouvir. No final da década de 1990 muitos diziam que a City definharia se Londres não aderisse ao euro - uma previsão que saiu furada e que os defensores do “Brexit” usam como escudo. 

Johnson e os seus aliados insistem que Londres conseguirá negociar um acesso privilegiado ao mercado único. Quando lhe lembraram que isso implicará aceitar os princípios da livre circulação e contribuir para o orçamento comunitário, apontou como modelo o Canadá. O país conseguiu um acordo de livre comércio com a UE, isentando de tarifas 97% das suas exportações, apesar de as negociações terem demorado sete anos e deixado de fora o sector financeiro. “Antevejo um futuro brilhante, muito brilhante”, afirmou o mayor de Londres na sexta-feira.

O problema para a campanha do “Bremain” (junção de Britain e remain, ficar) é que é muito difícil fazer a prova dos factos aos argumentos dos adversários. Não só porque nunca antes um país se desvinculou da UE, como ninguém sabe qual será a relação que Londres poderá, em caso de divórcio, estabelecer com os restantes Estados-membros. Os eleitores, escreveu a revista The Economist, “serão influenciados não por um cálculo frio entre os benefícios e as vantagens da permanência, mas pela visão geral que têm da UE”. 

É aqui que entra o medo, estratégia que nenhuma das campanhas assume publicamente, mas a que ambas recorrem - Michael Gove, ministro da Justiça e defensor da saída, afirmou que a UE é hoje uma fonte de instabilidade e insegurança. Uma táctica que pode não afectar os fervorosos eurocépticos ou os euro-entusiastas, mas que pode revelar-se muito eficaz junto dos indecisos, garantia há duas semanas no El País o jornalista John Carlin. No final, profetiza, “tudo dependerá de qual dos lados é capaz de apelar com maior eficácia ao instinto de sobrevivência mais básico da espécie humana, o medo; em concreto, o medo de perder dinheiro.”

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