Eutanásia activa: tirem os médicos da equação!

“Morte digna”? Uma ‘opção’ de quem, afinal, não tem opção livre de acesso a uma vida com cuidados dignos?

Da prática milenar da medicina aos códigos pelos quais esta se rege, tudo aponta, em termos deontológicos e de ética, para a defesa da vida. Porém, esses mesmos códigos, por forma a evitar que alguns, mais voluntariosos e bem intencionados, se obstinassem no uso de recursos e técnicas médicas para lá do que é razoável, proíbem a obstinação terapêutica, também dita distanásia ou encarniçamento terapêutico.

É, pois, contra a distanásia que todos devemos estar, porque, essa sim, é o contrário de uma morte digna e sem sofrimento. Também para evitar isso se criou a Declaração Antecipada de Vontade/Testamento Vital.

Por isso, a eutanásia, no seu verdadeiro sentido etimológico (“boa morte” ou “morte feliz”), já existe, está legislada e é  praticada a cada hora de cada dia, por médicos em todo o país. Foi, pois, com surpresa que assisti ao aparecimento de um manifesto intitulado “Pelo direito a morrer com dignidade”. E a surpresa não foi pelo que o manifesto propõe, mas pela deliberada mistificação do título.

 Será imaginável que haja, no séc XXI, alguém que defenda o direito a uma morte indigna? Surpresa, também, porque se fala em defesa da “'morte assistida”. Mas será que alguém defende que as pessoas devam, na fase terminal das suas vidas, morrer ao abandono, sem a assistência e conforto físico e psíquico?

Serei eu, que não sou assinante do manifesto – antes opositor do seu conteúdo –, um médico bárbaro que defende que as pessoas devem ser abandonadas à sua sorte, no momento da morte?

Não, não sou! Como já anteriormente escrevi, sou um intransigente defensor da existência de uma rede de cuidados continuados e paliativos com uma cobertura universal e de proximidade. Sou um defensor do Estado Social, em que ninguém sinta necessidade de terminar com a sua vida por ser ‘um fardo’ para a família ou por receio de ‘perda de autonomia’ sem acesso a Cuidados Domiciliários ou a um Cuidador Informal, essenciais para proporcionar uma vida digna a quem dela carece.

Em toda esta discussão, o que me parece é que estamos a começar a “casa pelo telhado”, i.e.: temos um país em que a rede de cuidados paliativos abrange menos de 10% dos que deles carecem, e estamos a falar em eutanásia activa como “opção livre” por uma “morte digna”???  Uma ‘opção’ de quem, afinal, não tem opção livre de acesso a uma vida com cuidados dignos?

Quando muito, falemos em “morte barata”, porque é muito mais vantajoso para o Estado, do ponto de vista financeiro, optar pela eutanásia activa em vez de apostar nos cuidados paliativos.

Outro dos aspectos focados pelos defensores da eutanásia activa, ainda que sob o eufemismo de “morte assistida”, é o de que estes actos devem ser medicamente assistidos.

Ramón Sampedro, o galego que é citado como exemplo pelos defensores da eutanásia activa por ter vivido “aprisionado no seu corpo” durante cerca de 30 anos depois de ter ficado tetraplégico, é um bom exemplo do contrário, pois não necessitou da assistência de um médico para morrer. A eutanásia activa apenas necessita de um produto farmacológico, que qualquer licenciado em farmácia tem obrigação de conhecer, e de um agente que administre esse mesmo fármaco. E, para isso, não é preciso um médico.

Aceito que outras classes profissionais entendam promover uma campanha para que lhes seja atribuída essa faculdade. Para mim, enquanto médico, a formação e a deontologia médica apontam para a vida!

Que outros profissionais da área da Saúde se não incomodem a administrar a morte, a mim não me incomoda. Problema deles. Pessoalmente quero continuar como lutador pela dignidade da vida.

Médico Estomatologista, Presidente da Direcção da Associação de Medicina de Proximidade

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