Buraka Som Sistema: dez anos da história mais surpreendente da música portuguesa

Foi nos primeiros meses de 2006 que começaram a ensaiar os primeiros passos ao vivo. Muitas voltas ao mundo depois, fomos encontrá-los em Londres numa das datas da que poderá vir a ser a sua última digressão. Nunca existiu outro grupo português da música popular com tanta visibilidade internacional.

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Electric Brixton, Londres Fabrice Bourgelle a.k.a./Focus
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João e Rui Pité (DJ Riot), impuseram o ambiente e o ritmo, com bateria, teclados e programações a fazerem subir a temperatura, antes de surgirem Kalaf, Andro Carvalho (Conductor) e Blaya, para as palavras, os incitamentos e a movimentação vertiginosa em palco Fabrice Bourgelle a.k.a./Focus
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Invasão de palco, Paris Ali Mousavi
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Trabendo, Paris Ali Mousavi
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Melkweg, Amesterdão Ali Mousavi
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Melkweg, Amesterdão Ali Mousavi

E num ápice passaram dez anos. Foi nos primeiros meses de 2006 que os Buraka Som Sistema começaram a ensaiar os seus primeiros passos ao vivo, no pequeno clube Mercado em Lisboa. Muitas voltas ao mundo depois, num movimento contínuo que os transformou na banda com mais impacto internacional de sempre da pop portuguesa, fomos encontrá-los em Londres no último sábado, numa das datas daquela que poderá vir a ser a sua última digressão, antes da paragem por tempo indeterminado, anunciada o ano passado.

É isso. A série de concertos em que celebram dez anos, que teve início a 5 de Fevereiro em Bogotá, na Colômbia, e que terminará a 1 de Julho na Torre de Belém de Lisboa,  poderá ser a última em que os veremos em palco.

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duas mil pessoas esgotaram a Electric Brixton. Andy Duggan, agente internacional do grupo, estimava: “15% talvez sejam portugueses que habitam aqui, mas 85% são ingleses, ou franceses, ou espanhóis, ou italianos que os querem ver e isso é incríveL" Fabrice Bourgelle a.k.a./Focus

“Fico triste por acabarem, até porque já os vi aqui em Londres três vezes e foi sempre excepcional, sendo ao mesmo tempo motivo de orgulho e uma forma de mostrar que existe em Portugal mais do que fado”, diz-nos Hernâni Matos, 33 anos, a viver na capital inglesa há oito, a poucos minutos do grupo entrar em palco na lotada sala Electric Brixton. “Compreendo que desejem parar, foram muitos anos em trânsito e cada um deve ter outras ideias em mente”, lança Raquel Braça, que acompanha Hernâni.

“Se acredito que vão acabar? Nem pensar!”, ri-se Andy Duggan, o agente internacional do grupo. “Dois anos depois vão regressar, é inevitável, olhe à volta, têm uma sólida base de admiradores”, afirma, fixando as cerca de 2 mil pessoas que enchem a sala. “15% talvez sejam portugueses que habitam aqui, mas 85% são ingleses, ou franceses, ou espanhóis, ou italianos que os querem ver e isso é incrível! Se pensarmos que, ontem, tocaram em Paris, e antes, em Amesterdão ou Berlim, também com lotações esgotadas, dá que pensar. Porquê terminar?”

Eles falam de parar para respirar, depois de dez anos intensos. Só vale a pena voltarem a gravar se existirem novas ideias com validade. Argumentam que um ciclo se fecha e outro se abre, com novas formas de comunicar, para lá dos Buraka. Mas isso será mais tarde. Para já, a seguir à Europa, em Abril, seguir-se-ão três datas nos EUA (Los Angeles, São Francisco e Nova Iorque) e provavelmente outros concertos serão adicionados, antes do adeus, em Lisboa, numa digressão iniciada com três datas na Colômbia, depois de ali já terem actuado, em 2010, num festival para 100 mil pessoas.

“Em toda a América do Sul acabamos por sentir que existe uma forma de consumir a nossa música muito eufórica”, diz-nos João Barbosa (Branko), durante a tarde, numa das pausas do ensaio de som. “Na Cidade do México também sentimos isso. Parece existir um entendimento da música mais directo, quase como se fôssemos uma banda de lá.”

“Acabamos por tocar nas mesmas referências que eles, porque ao contrário do que talvez se possa imaginar, são muitos atentos, estreitando laços com o resto do mundo, através do YouTube ou Facebook”, completa Kalaf Epalanga. “Estão longe apenas em termos geográficos. Uma noite saí em Medellín e pude constatar que lá se ouve o mesmo som que em qualquer clube europeu.”

Londres, um papel central
Convém, desde já, desfazer equívocos. O campeonato dos Buraka não é o dos Coldplay, U2 ou Beyoncé. O seu feito não se pode medir a partir daí. Mas pode aquilatar-se a partir de uma outra medida simples. Nunca existiu nenhum outro grupo português da música popular com tanta visibilidade internacional como eles, tocando em salas de prestígio (do Fabric de Londres à Bowery Ballroom de Nova Iorque) ou em grande festivais (Coachella nos EUA, Roskilde na Dinamarca ou Montreux na Suíça), sendo alvo da atenção dos media especializados (da Pitchfork à The Fader) ou da mais influente generalista (New York Times, L.A Times, Le Monde, The Guardian, El País ou CNN).

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Melkweg, Amesterdão Ali Mousavi

Com excepção dos afluentes conectados com o fado – dos Madredeus a Ana Moura, passando por Amália – nunca um projecto iniciado aqui tinha levado o nome de Portugal tão longe, aproveitando um ambiente comunicacional novo e utilizando as ferramentas digitais de ligação global. Numa recente ida ao festival Eurosonic de Groningen, Holanda, a maior montra da indústria da música europeia, em qualquer conversa sobre Portugal havia nomes referenciados: Paus, Batida, Legendary Tigerman, Dead Combo, Moonspell, Mariza ou Ana Moura. Mas só um gerava o pleno em todas as conversas: Buraka Som Sistema. E os membros do grupo têm noção desse efeito? “Sim”, responde Kalaf, dando um exemplo: “no outro dia estava nos BAFTA, nos prémios britânicos de cinema, e uma jornalista inglesa de cinema perguntou-me o que fazia. Respondi-lhe que fazia música electrónica com sensibilidade africana a partir de Lisboa e ela, de imediato, percebeu que eu estava a falar dos Buraka.”

Na criação de toda essa dinâmica, Londres teve um papel central. Foi por isso especial a noite do Electric Brixton. Não foi apenas mais um concerto dos Buraka. Foi uma ocasião para celebrar o grupo, mas também toda a sua rede de cumplicidades, com prestações da dinamarquesa de origem indiana Alo Wala, sessões DJ de Branko, Rastronaut e do inglês Poté, e também a transmissão do documentário sobre o grupo, Off The Beaten Track (2013).

Mas, claro, como é evidente, o momento alto foi a hora e meia de concerto do grupo. Entraram primeiro João e Rui Pité (DJ Riot), impondo o ambiente e o ritmo, com bateria, teclados e programações a fazerem subir a temperatura, antes de surgirem Kalaf, Andro Carvalho (Conductor) e Blaya, para as palavras, os incitamentos e a movimentação vertiginosa em palco, seguindo um alinhamento que contempla os seus dez anos de vida.

“Tentámos fazer um alinhamento que passasse por todos os álbuns”, revela João. “Sempre que lançávamos um álbum novo tentávamos que os concertos fossem mais focados nele durante o ano e meio seguinte, mas neste caso acabamos por ir a todos os discos.” Para além disso, existe outra diferença, em relação a digressões anteriores: “Retirámos por completo o vídeo porque já existia imensa informação em palco, com cinco pessoas a tocar, a cantar e a saltar”, salienta Kalaf. “Era como se o vídeo lutasse connosco por protagonismo. Não fazia sentido. Agora temos só alguns elementos cénicos.”

Realmente não é preciso mais do que os membros do grupo e a sua música para a euforia se instalar. Temas como Yah!, Sound of kuduro, Kalemba (Wegue wegue), Hangover (bababa), (We stay) Up all night, Soopid ou Van Damme são recebidos em êxtase, com a adrenalina a subir sempre que João e Rui aumentam a intensidade sonora e Blaya, Conductor e Kalaf se desdobram em interpelações e movimentos de dança.

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LISBOA, CLUBE MERCADO/2006
Nos primeiros meses de 2006 o grupo proporcionou três sessões ao vivo naquele pequeno clube já desaparecido. Foi ali que muitos tomaram contacto com a sua música pela primeira vez Ana Gilbert

O som é apoteótico, sujo e distorcido, sem preocupações de domesticação, abrindo-se à desordem do mundo, celebrando-o, reflectindo o estilhaçar de expressões musicais urbanas das mais diversas partes do globo, expostas numa sonoridade física, pulsante e colorida. Há um apelo tão primitivo como radicalmente contemporâneo na sala: uma espécie de irremediável catarse colectiva.

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LONDRES, FABRIC/2007
Já tinham tocado antes em Londres, mas foi quando se apresentaram no clube Fabric, em 2007, que a capital inglesa passou a fazer parte da sua rotina profissional. Aqui, na companhia de M.I.A. Ana Gilbert

Hoje os Buraka são uma máquina que nunca falha. Onde quer que vão já se sabe que a celebração mais livre está garantida. Há quadros cénicos que nunca desaparecem, como quando pedem à assistência para se sentar e depois saltar em uníssono, ou quando o palco é invadido por raparigas das primeiras filas para aflição dos seguranças. No final pedem ao público para com eles tirarem uma foto com as duas mãos abertas a sinalizarem dez anos.

Ao longo dos tempos, por esse mundo fora, foram ganhando de tal forma a reputação de criarem um ambiente eufórico que mesmo grupos de grande impacto mediático se recusavam a tocar a seguir a eles, receando não conseguir criar o mesmo tipo de empatia. “Essa fama ganha-se na estrada”, lembra Kalaf, “e são esse tipo de coisas que vão solidificando o que vai sendo feito.”

A segunda ida do grupo a Londres, em 2007, quando ali actuaram no clube Fabric, como na altura testemunhámos, foi um dos momentos fulcrais do seu percurso. “Londres foi uma ponte importante”, concorda João. “Foi aqui que, estrategicamente, estabelecemos management e agenciamento o que tornou mais fácil a ligação com o resto do mundo. E depois desse concerto do Fabric criou-se um interesse à nossa volta que foi benéfico e que fez com que regressássemos mais vezes para concertos em locais inusitados, festas em espaços industriais e coisas assim, e foi nesses sítios que essa ligação muito particular com Londres se estabeleceu.”

“É a segunda vez que os vejo e não creio que existam muitos projectos assim, que consigam fazer este tipo de festa”, diz-nos Debora Winger, largo sorriso e ainda a suar no final do espectáculo, poucos segundos depois de ter tirado uma foto ao lado de Kalaf e Conductor que, no final, se misturam com o público.

This is Lisbon sound
Mas em 2005, há onze anos, o grupo tinha mais dúvidas do que certezas acerca do rumo a seguir. Um ano antes, no contexto da editora Enchufada, Rui parecia mais vocacionado para o drum & bass e João e Kalaf haviam lançado o projecto 1-Uik Project, algures entre o pós-hip-hop e o jazz, parecendo focalizados nessa aventura.

A partir de determinado momento parecia que iria ser essa a aposta e um segundo álbum dos 1-Uik Project chegou a ser gravado, mas nunca lançado. Em 2005, Conductor, do grupo angolano de hip-hop Conjunto Ngonguenha, era  presença habitual no espaço da Enchufada, em Campo de Ourique. Era ele que trazia novidades do kuduro e acabou por introduzir a cantora Petty, de 15 anos. Estavam lançadas as bases para a ideia Buraka.

Em Junho de 2005, no final de uma sessão DJ no Sónar de Barcelona, João surpreendeu os presentes pondo a tocar, no final, a faixa Yah!, enquanto Kalaf gritava ao microfone “this is Lisbon sound!”, perante a primeira reacção entusiasta de uma assistência multinacional. Três meses depois, na Casa da Música do Porto, numa noite da Enchufada, o nome Buraka Som Sistema nasceu. Alguém disse que estavam a trazer o som da Buraca para ali e a ideia pegou. Foi assim que a Buraca, freguesia da Amadora, onde João e Rui se haviam conhecido na escola local, haveria de dar origem ao nome.

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CALIFÓRNIA, COACHELLA/2009
O Coachella é o festival mais mediático do mundo nos últimos anos. Depois de ali terem actuado, em 2009, foram notícia nos jornais e canais de TV americanos, sendo a sua actuação uma das mais comentadas Ana Gilbert

A partir de determinada altura, em 2005, era nítido que tinham de optar: ou apostar nos 1-Uik Project, que tinham acabado de gravar, ou focarem-se nos Buraka, com todas as incertezas inerentes ao facto de ser uma sonoridade que se situava num limbo, não totalmente aceite e compreendida pelos novas gerações de portugueses de ascendência africana, mais conectados com a cultura hip-hop, nem consumida pelos portugueses enquanto todo, quando não olhada mesmo com indiferença e preconceito.

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TÓQUIO, JAPÃO/2009
Ao longo dos anos, para além da Europa, tocaram na Austrália, EUA, América do Sul, Índia ou África, mas foi no Japão que ganharam alguns dos admiradores mais empenhados Ana Gilbert

Não espanta que – nos primeiros anos e ainda hoje, na verdade – sempre que se falava deles existiam hesitações na forma de os nomear: portugueses, angolanos, africanos, luso-angolanos, lisboetas, lusófonos? E a música que praticavam conduzia ao mesmo tipo de interrogações: lisboeta, portuguesa, luso-angolana, afro-portuguesa? Raramente era mencionado de forma clara que estávamos perante um grupo português e que aquilo que faziam é música popular portuguesa.

Claro que essa conflitualidade identitária era também transportada no seio do próprio grupo. Hoje talvez mais pacificada. Mas há dez anos o próprio colectivo parecia não saber bem onde se situar. Era evidente que parecia existir um ambiente internacional propício, com o eclodir de M.I.A. e Diplo e a legitimação de linguagens urbanas até aí desacreditadas, como o baile funk brasileiro ou o dancehall jamaicano. Mas as dúvidas eram muitas.

“Nesse processo de decisão existiram opiniões importantes que auscultámos, como a tua”, diz às tantas João, aludindo a conversas nessa ocasião, mas houve elementos mais aleatórios tidos em conta. “O disco dos 1-Uik ficou num computador que se estragou e outra coisa importante foi o Kalaf aparecer um dia com um livro de I Ching e termos perdido uma tarde a consultar o oráculo para decidir que disco haveria de sair e ganhou Buraka!”, Kalaf ri-se: “É verdade, mas no fundo já tínhamos decidido. O oráculo fez-nos ver o que queríamos ver.”

As primeiras reacções que o projecto desencadeou foram importantes. Mas a grande prova surgiu com as primeiras apresentações em palco, no clube Mercado, em Lisboa. Sem disco lançado, com meia dúzia de temas criados, começavam a ganhar alento, tendo sido pela primeira vez capa deste suplemento em Junho de 2006. Percebia-se que tinham tudo para dar certo e nesse ano acabaram por lançar o single Yah! e um mini-álbum, premonitoriamente chamado From Buraka To the World, onde aproveitavam a singularidade do kuduro, para a fazer coabitar com traços de grime, baile funk ou dancehall.

A partir do início de 2007 as solicitações para espectáculos sucederam-se (Londres, Estocolmo ou Amesterdão) e os ecos na imprensa mundial (I-D, Dazed and Confused, Fact ou The Fader) sentiram-se. Chamam-lhes “kings of neo-kuduro”, explicitando que tinham capacidade para conduzir multidões à loucura. Como consequência, uma das mais importantes empresas de agenciamento inglesas, a Primary (Daft Punk, Oasis ou Peter Gabril), assina um contrato com eles.

“A primeira vez que os vi fiquei rendido, naquela linha com pontos de contacto com os Spank Rock, mas a Belinda da Primary também os viu e acabou por ganhar a competição à primeira e ficar com eles”, ri-se o agente Andy Duggan, recordando as primeiras impressões. Ele que é também agente dos Django Django ou Santigold, não tem dúvidas que os Buraka são um dos grupos com quem mais gosta de trabalhar. “Podem ser postos em novas situações, porque existe a certeza de que vão dar conta do recado. Têm disponibilidade, talento e energia. Nunca lançarão discos para venderem milhões, mas a sua música conecta realmente com as audiências de uma forma que é muito rara de ver por aí. E isso é incrível.”

Para que algumas portas se abrissem foram essenciais as amizades geradas com figuras como o americano Diplo (Major Lazer), na altura cúmplice de M.I.A. e mentor da editora Mad Decent, ou os ingleses Sinden e Switch. “Sem dúvida”, concorda João, recordando que Diplo depois de os ver no festival Hype.Tejo, em Lisboa, “não se calou enquanto não conseguiu que os responsáveis pelo Fabric em Londres organizassem uma noite.”

A meio de 2007 confrontaram-se com um problema maior. A jovem Petty, que ao vivo era o grande foco das atenções, estudava (tinha então 16 anos) e não os podia acompanhar na maior parte das deslocações. Resolvem prescindir dos seus serviços, apresentando-se no Verão de 2007 em alguns dos maiores festivais da Europa (do inglês Glastonbury, ao dinamarquês Roskilde, passando pelo Exit da Sérvia) já sem ela. Existiu quem temesse que poderia ser o fim do projecto, mas não.

“Nunca fomos um grupo clássico, até porque existiram sempre muitos convidados vocais nos álbuns”, lembra Kalaf. “Nesse sentido fomos ganhando consistência em movimento. A ambição foi-se solidificando à medida que se superaram dúvidas e se foi conquistando um espaço que não existia. Nos éramos um Ovni a competir nos palcos destinados à pop. Fomo-nos construindo pelo caminho.” E João completa: “A Petty fez parte desse caminho, mas mais importante do que a superação da sua saída, foi o momento da sua descoberta, quando gravámos o Yah!, com aquela sua energia em bruto.”

Em 2008 a máquina funcionou a todo o vapor e para isso muito contribui o lançamento viral do tema Sound of kuduro, com participação vocal de M.I.A., naquela que foi a primeira amostra do álbum Black Diamond. O sucesso dos Buraka é indissociável do momento comunicacional desse período com ferramentas como o MySpace ou o YouTube a potenciarem a comunicação directa com o público, nomeadamente através dos vídeos. E nesse campo o de Sound of kuduro foi impactante, com imagens captadas aquando de uma visita a Luanda. Foi aliás o vídeo que contribuiu para convencer M.I.A., que estava relutante com o resultado final da canção. “Lembro-me de lhe enviar o tema e de ter sentido que ela não tinha amado o que ouvia”, diz João, “mas depois de ter visto o vídeo ficou rendida e foi aí que ela autorizou por fim o lançamento do single com a participação dela.”

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Na digressão que se seguiria ao lançamento do álbum optam por introduzir um baterista e um percussionista, forma da sonoridade do grupo ganhar mais corpo ao vivo, e de os projectar nos festivais. “Quando fomos convidados para actuar no palco principal do Sudoeste, e depois no Alive! ou no Rock In Rio, resolvemos contratar o percussionista Mick Trovoada e o Fred Ferreira [Orelha Negra, Banda do Mar] para a bateria”, recorda João, “porque parecia-nos importante acrescentar elementos à música e do ponto de vista cénico, pelo menos nos palcos de grandes dimensões, era importante tê-los preenchidos.”

Entre 2006 e 2008 haviam tocado por toda a Europa, dos clubes mais selectos aos grandes festivais. Também já haviam actuado no Japão, Austrália e EUA, mas foi em Abril de 2009 que realizaram a primeira digressão consistente pelo território ianque, já depois de Black Diamond ali ter sido lançado. Quando o disco saiu o interesse no Ocidente sobre sonoridades africanizadas estava no auge. Não era já só nos universos conotados com as músicas urbanas. Também do rock alternativo (Vampire Weekend, Dirty Projectors) sopravam ventos africanos. E eles, de forma indirecta, beneficiaram disso.

Nos EUA, seja pela actuação no californiano festival Coachella, ou na Bowery Ballroom de Nova Iorque, conseguem enorme visibilidade, com o New York Times ou o Los Angeles Times a destacar a sua prestação. Pela primeira vez um grupo português do universo pop tinha impacto nos EUA e era referenciado pelos media do mercado mais apetecido do mundo, o que não significa necessariamente conquistar um território muito difícil.

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“O burburinho que se gerou não passou para outro nível – apesar de já termos feito mais duas digressões nos EUA – porque há distanciamento em relação aos artistas europeus”, defende João. “Trabalhar para os EUA implicava montar lá uma estratégia. Foi uma escolha consciente não perder esse tempo. Estávamos a construir uma coisa mais consistente na Europa.” Há também razões de contexto, assinala Kalaf: “Ao longo destes dez anos a América também mudou a sua relação com a música de dança. Quando estávamos a entrar aconteceu o boom dos franceses – a Ed Banger e os Justice, por exemplo – e havia uma frente europeia a levar informação que não existia lá. Com os anos isso foi-se alterando. Dito isto, existem formas de contornar os obstáculos, dependendo das prioridades que se estabelecem. Agora é evidente que o Coachella deu-nos respostas importantes. Deu-nos a certeza que conseguíamos estar àquele nível e que o caminho que tínhamos escolhido fazia sentido.”

Entre 2009 e 2010 esse itinerário levou-os, novamente, da mais escondida terra de Portugal até palcos na Europa, EUA, Japão, Austrália ou Angola. No final de 2009 aconteceu até uma surpresa. Os espanhóis renderam-se a Kalemba (Wegue wegue) e durante várias semanas a canção não saiu do 1ºlugar dos singles mais ouvidos. “Esse facto serviu, acima de tudo, para tomarmos consciência do que estava a acontecer, porque no meio dos acontecimentos é fácil não ter distanciamento”, afirma João, enquanto Kalaf olha para o assunto de outro prisma.

“Os espectáculos em Portugal sempre correram bem, mas o sucesso fora de portas ajudou a solidificar o que acontecia também em Portugal, ao nível dos media e do tempo de antena, embora o nosso campo de acção sempre tivesse passado por canais como o YouTube, que permitem um acesso directo ao público.”

Em 2011 lançam o álbum Komba e há dois anos saiu o último Buraka, ao mesmo tempo que a figura de Blaya foi ganhando destaque, e eles se continuaram a afirmar como grupo português, mas com uma carreira acima de tudo internacional, movendo-se entre aviões, aeroportos e hotéis. Hoje, quando olham para trás, reconhecem que talvez não tenham ido ainda mais longe porque estiveram quase sempre relativamente sós. Ou por outra, foram obrigados a construir as suas próprias afinidades.

“Durante estes dez anos, éramos os únicos na sala do lugar de onde vínhamos”, diz Kalaf. “Tivemos sempre que nos associar a movimentações que estavam a acontecer ou prestes a ocorrer. Quando aconteceu a invasão francesa da Ed Banger encontrámos ali uma comunhão e deixámo-nos ir por arrasto. Depois estivemos também com os americanos por causa do Diplo e da Mad Decent e com os ingleses fomos a reboque do dubstep. Enfim, não me queixo e aprendi muito. Fui vivendo o sonho que alguns acalentam, mas é importante ter a noção que só se vai lá fazendo parte de uma equipa.”

Quem diz uma equipa, diz uma família, uma vaga de acontecimentos, uma tribo, ou pelo menos sensibilidades partilhadas. “Isso foi uma das coisas que mais impacto teve em mim”, confessa João. “De repente estás num grande evento, com músicos e agentes de todo o mundo, é hora de jantar, e vês-te de tabuleiro não mão sem saber bem para onde ir.  Dás-te conta que não pertences a nenhum lugar. Olhas à volta e percebes que existe uma mesa de ingleses, onde está desde a Annie Mac da BBC Radio 1 ao Skream, e uma outra de franceses, e é verdade que somos amigos de todos, mas no momento da verdade sabemos que nem sempre fazemos parte das opções.”

E o que é o momento da verdade? “Vou dar um exemplo”, expõe João: “quando o Kalemba estava a ter impacto em todo o lado, a Annie Mac podia ter apostado no tema, até porque sabíamos que gostava dele. Ela tinha esse poder. E essa pode ser a diferença entre ter sucesso em alguns países e ter um êxito mundial. Essa decisão não aconteceu porque não tínhamos ninguém influente a jogar na nossa equipa. E isso, pelo menos a este nível, acaba por ser determinante.”

É essa consciência de que nenhum caminho se faz de forma isolada que levou o grupo desde sempre a apostar noutros projectos, no contexto da Enchufada, e em noites onde fosse possível criar um ambiente colectivo propício, como as Hard Ass no Lux. Em parte é isso que parece que vai ocupar alguns dos membros do grupo no pós-1 de Julho. Depois de dez anos de aprendizagem, querem abrir portas a outros com o que conheceram.

“Fechar este ciclo e abrir outro, tem também a ver com essa consciência de que existem milhares de formas de entretenimento para serem ainda exploradas e queremos continuar a plantar sementes por aí”, diz João. “Há outras formas de chegar às pessoas, para lá dos Buraka, e cada um de nós vai continuar a querer fazê-lo”, conclui Kalaf.

O último concerto da digressão será na Torre de Belém, no contexto das festas da cidade de Lisboa, mas não foi essa a primeira opção. “Imaginámos o último concerto no estádio do Estrela da Amadora, ou no parque central da cidade, pelo simbolismo”, revela João, “mas depois focámo-nos na Torre de Belém, porque é uma área que permite juntar todas as pessoas que nos foram acompanhando ao longo dos anos.” A ideia é que aquilo que vai acontecer este ano, se venha a repetir por muitos.

“Trata-se de terminar um ciclo e começar outro, onde vamos tentar fazer com que Lisboa seja a capital da electrónica globalizada um dia por ano. Queremos que seja o embrião de um evento anual onde se celebra o espírito que os Buraka carregaram ao longo destes anos.”

E que espírito é esse? Por momentos regressamos ao Mercado em 2006, onde de um palco improvisado se distinguem cinco vultos, enquanto um ritmo sintético desvairado zurze nas paredes, volteia-se e aloja-se no corpo, que parece dançar sozinho, imerso no colectivo. Na Electric Brixton de 2016 essa inspiração ainda lá está.

Agora o som é melhor, a encenação mais vincada, mas o sentimento de surpresa, para quem sente aquela música pela primeira vez é o mesmo, descobrindo que no Portugal pós-colonial também há música radiante, maliciosa e dançável, síntese de referências que convergem aqui.

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