As lojas "sabem como estamos de saúde ou se nos divorciámos"

ShiSh Shridhar, director mundial para a área do retalho da Microsoft diz que no novo mundo “omnicanal” os retalhistas sabem (quase) tudo sobre o que compramos e porquê.

Foto
ShiSh Shridhar é o director mundial para a área do retalho da Microsoft Enric-Vives Rubio

ShiSh Shridhar analisa as tendências no retalho mundial na Microsoft e acredita que as barreiras entre o mundo online e físico estão a desaparecer: o mundo é hoje “omnicanal”, ou seja, compra-se e vende-se em qualquer plataforma. A Internet não acabou com as lojas físicas, antes, trouxe informação detalhada sobre o cliente e permitiu a recolha massiva de dados pessoais. Os retalhistas conhecem os consumidores, a sua personalidade, e vida pessoal.

Quem conhece melhor os consumidores, o comércio online ou o tradicional?
Neste momento, as lojas online têm mais informação sobre os consumidores porque a interacção é digital e, por isso, há um rasto de tudo o que o consumidor faz. A informação sobre o seu comportamento é capturada e gravada: o que procuram, o que escolhem, o que escolhem e depois abandonam, qual é o perfil, que idade têm, de onde vêm. São recolhidos muitos dados pessoais que são, depois, relacionados com o seu comportamento. Assim, os retalhistas online têm muito mais conhecimento sobre os seus clientes. A maior parte dos retalhistas tradicionais têm pouca informação e, em alguns casos, quando não há programas de fidelização, não têm qualquer ideia de quem são os clientes. São pessoas sem nome e sem rosto que entram na loja. Não conseguem perceber se uma zona específica da loja é mais popular entre os jovens de 20 anos, por exemplo.

A diferença de conhecimento é grande.
Sim. Mas isso está a mudar. Devido à tecnologia existente e ao interesse pela Internet das Coisas [IoT, na sigla inglesa], muitos dos retalhistas também querem ter as mesmas vantagens do comércio online. E a Internet das Coisas deu-lhes essa opção.

De que forma?
Por exemplo, recorrendo a simples sensores, que contabilizam o número de pessoas que entram e saem das lojas. Só com essa informação conseguem saber quantos clientes têm em média por dia e qual é a média consoante a altura do dia. Com esses dados, podem fazer previsões e saber que segunda-feira é o dia com mais movimento, por exemplo. Trata-se de informação muito básica, mas se a relacionarem com, digamos, o estado do tempo, conseguem saber qual é a correlação entre o tráfego na loja e as condições meteorológicas. Se está valor ou frio, qual é o impacto? Se há jogo de futebol, qual é o impacto? Este é um aspecto.

O que fazem depois com essa informação?
Podem fazer promoções. Do ponto de vista do custo, podem optimizar os recursos humanos. Sabem que em dias em que há jogos de futebol há poucos clientes nas lojas e não são necessários tantos trabalhadores. Os retalhistas trabalham com margens muito curtas e qualquer coisa que os ajude a optimizar custos é importante. Se tiverem sensores de movimento são capazes de identificar quais as zonas da loja mais movimentadas e a que horas isso sucede e as que, pelo contrário, não têm ninguém. Conseguem, assim, mudar o desenho da loja. Há vários tipos de sensores que estão a ser testados e as câmaras são apenas um. Qualquer loja tem um circuito de videovigilância e os retalhistas estão a usá-lo para outros fins. Estão a recolher dados e a analisá-los usando machine learning para entender padrões [a partir da análise histórica de grandes quantidades de dados], são capazes de fazer coisas como reconhecimento de imagens e detectar a idade média, género…

Apenas com a filmagem?
Sim. Quando um sistema de machine learning olha para as diferentes imagens consegue detectar se é homem e mulher. A Microsoft trabalha com alguns retalhistas onde esta análise é forma automática: as câmaras conseguem dizer onde é que os homens vão, qual é o padrão. Fizemos vários estudos e concluímos que os homens vão directos ao que querem comprar enquanto as mulheres circulam muito mais. Com esta informação comportamental, podemos saber se determinado produto é mais popular entre homens ou mulheres, entre outros. Neste caso, trata-se de informação demográfica. Usamos também outra tecnologia, como as kinect cameras (presentes na Xbox) que conseguem detectar profundidade e há retalhistas que as estão a usar. Com uma câmara em cima de uma prateleira é possível perceber que produto o cliente escolheu. Se um fabricante de cerveja quer testar uma nova embalagem, faz um teste simples de A e B para perceber qual é a mais atractiva. Consegue-se perceber se os clientes querem a pegar na cerveja, se pegam, olham, mas não a levam, ou se a compram. Conseguem perceber qual é a embalagem que melhor funciona. Outra tecnologia que está agora a ser muito usada são os beacons, transmissores muito pequenos que comunicam com os telemóveis e indicam a localização. Os retalhistas usavam aplicações para smartphone mas perceberam que ninguém as usava. Combinando as aplicações com os beacons, conseguem criar ofertas com mais significado para o cliente. A McDonald’s, por exemplo, não conhecia os seus consumidores e queria que usassem a sua aplicação. O que é que os clientes da McDonald’s mais valorizam? Rapidez. Então o que fizemos foi usar o conceito de geo-fencing [perímetro virtual], que automaticamente identifica a presença do telefone e faz com que surja uma mensagem.

Com a autorização do cliente, certo?
Sim. É aqui que entra a proposta de valor. Se a aplicação trouxer valor para o cliente, autoriza. Caso contrário, não. A linha é muito ténue e os retalhistas querem ultrapassá-la, com personalização e capacidade de machine learning para perceber o que é mais importante para um determinado consumidor. Se a oferta for valorizada pelo cliente, as hipóteses de usar a aplicação são maiores. O que a McDonald’s fez foi analisar o padrão de consumo (o que compra e o que é mais provável comprar em determinados momentos do dia). Assim que se entra naquele perímetro determinado, surge logo uma notificação, o cliente escolhe o menu, o pedido segue para a cozinha, o cliente vai levantá-lo e paga com o telefone. Nem sequer usa cartões. Na Holanda esta aplicação teve enorme sucesso, com um milhão de downloads numa semana. Foi um projecto-piloto que está agora a ser adoptado no Japão e nos Estados Unidos. Ao descarregar e usar a aplicação, a identidade, informação demográfica, fica acessível. E as suas escolhas de consumo estão ligadas a essa informação. O que esta experiência me mostrou é que, assim, a McDonald’s consegue tornar-se muito mais relevante e pessoal nas ofertas que faz aos seus clientes. Com tantos dados recolhidos, conseguem personalizar a oferta.

Quando fala em personalização, refere-se a dados pessoais que são analisados e usados em bloco. Ou seja, não se trata de uma oferta especificamente para mim, mas para todos os clientes com um perfil como o meu, ou trata?
Há dois níveis. Em alguns países, informação muito pessoal não é permitida e a Alemanha é um exemplo. É provavelmente o país mais rígido, onde a recolha e a utilização da informação é proibida. Mas na maioria a oferta é de facto para o indivíduo. É um equilíbrio delicado. Devem os retalhistas enviar ofertas tendo em conta a personalidade do cliente? Será isso considerado assustador? Quando começamos a entrar na zona das previsões, sim, é assustador. A melhor forma é ser transparente e dar opção de escolha ao consumidor. Terá de ser ele a decidir se quer dar acesso ao telefone. Alguns retalhistas foram longe de mais. A Nordstrom, por exemplo, usou redes de beacons ligadas aos telefones dos clientes sem pedir autorização e causou muita polémica.

Aparentemente é uma vantagem descarregar uma aplicação e ter descontos. Parece fácil. Mas a verdade é que desconhecemos que (e quantos) dados que cedemos.
Sim, quando olhamos para a quantidade de dados… As empresas têm informação detalhada sobre o que comem os clientes com 20 anos, quais são as preferências específicas, sabem quem somos. É a parte assustadora. Houve aquele caso há cerca de cinco anos na Target que sabia que uma cliente estava grávida… é verdadeiramente assustador. Porque quando se recolhe uma quantidade enorme de dados, os computadores fazem inferências e correlações baseadas no comportamento de compra. Sabem que há, por exemplo, um padrão de compra relacionado com a gravidez. Também sabem quando mudamos de dieta alimentar e porquê. Conhecem o nosso estado de saúde.

Sabem se somos solteiros se nos divorciámos ou se comprámos um gato.
Exactamente. Um retalhista disse-me, um dia, que perceberam que um cliente estava divorciado porque começou, de repente, a comprar coisas típicas de um homem solteiro. Sabem como estamos de saúde, se nos divorciámos ou se estamos de dieta.

Mesmo sem smartphones, há cartões de fidelização. E temos muito pouco conhecimento sobre o que dizem sobre nós e o que fazem, depois, as empresas com essa informação.
Os retalhistas gostam de enaltecer as vantagens que o cliente ganha com o cartão.

Mas na prática ficam muito mais a ganhar do que o consumidor, certo? Ganham informação pessoal.
Acredito que há vantagens para os dois. Os retalhistas ganham maior eficácia: quando gastam em publicidade e marketing o retorno desse investimento é mais alto. E como têm acesso a informação pessoal sobre o cliente, as ofertas que lhes fazem são mais relevantes e interessantes. Outro exemplo. Uma imobiliária de Seatle enviava publicidade a quem nem sequer estava à procura de casa. Começaram a usar machine learning e análise de dados avançada para detectar padrões e descobriram que famílias que viviam numa casa com vários quartos mudavam quando os filhos saíam. Agora, assim que o filho mais novo faz 18 anos e vai para a faculdade sabem que esta é a altura perfeita para vender casas, mesmo antes do potencial cliente sequer pensar nisso.

Não é demais?
É. Mas tem a ver com concorrência. As empresas disputam a carteira dos clientes e querem chegar a ela antes da concorrência. Porque de uma forma ou outra, o cliente vai comprar uma casa e quando essa altura chegar é mais provável que agarre uma oferta que lhe chegou numa altura pertinente. Ninguém gosta de spam na caixa de correio. Quando recebemos algo, queremos que seja relevante. E o retalhista optimiza os gastos em marketing e garante que a taxa de sucesso é maior. Outro aspecto interessante é que algumas das empresas que estão a identificar padrões estão a partilhá-los com os seus clientes. Sabem com quanta antecedência as pessoas habitualmente compram casacos de Inverno e informam os seus consumidores quais são as peças que estão a ser mais compradas por adolescentes, numa determinada zona geográfica, ou altura do ano.

De que forma estão a partilhar essa informação? Newsletters?
Integram isso num programa de fidelização. É uma forma de dizer: “como é um cliente fiel estamos a oferecer informação relevante”. Estão a tentar encontrar formas únicas e transparentes de partilhar esses dados e dar valor ao consumidor. Os retalhistas não querem mostrar que estão a recolher muitos dados sobre os clientes. O mais assustador – e este é o desafio que empresas como o Facebook, Twitter ou Google estão a enfrentar – é que com a dimensão de dados recolhidos conseguem dar informação sobre usos futuros. O Facebook recolhe muita informação sobre os nossos acessos, onde fomos, etc. Como a está a usar, não temos a certeza ainda. Resumindo, os retalhistas têm de perceber como equilibrar esta relação e manter a confiança dos seus clientes.

As maiores cadeias de retalho levarão muito mais tempo a ter essa informação sobre o cliente, ou não?
Não. Fazem-nos através do smartphone. É aqui que entra o mundo omnichannel. As barreiras entre o mundo online e físico estão a desaparecer e o comércio online também está ameaçado. Nenhum dos dois está a ganhar. É o mundo entre os dois que está em causa. Hoje quando estou numa loja e preciso de uma informação, o mais provável é recorrer ao telefone, incluindo para saber o que os outros pensam sobre determinado produto. É possível “tagar” os produtos, falar sobre eles, partilhar, saber que amigos meus gostam do produto. Os retalhistas estão a automatizar o processo de análise de dados e querem tornar o acto de comprar divertido. A repetição de padrões permite criar uma lista de compras fidedigna, poupar tempo e automatizar o processo. Se conseguirem uma subscrição, por exemplo, conseguem oferecer os produtos mais baratos.

Como estamos em Portugal nesta matéria?
No passado os dados eram difíceis de obter, hoje não. Os dados estão disponíveis e é possível ter informação estatísticas de Lisboa e Portugal, combiná-la com dados de vendas e do rendimento das famílias e perceber que tipo de produtos as pessoas tendem a comprar. Antes era difícil. Depois, o custo era enorme, mas hoje não.

Sugerir correcção
Comentar