Como o Partido Republicano abriu a porta ao elefante que tem na sala

As opções são cada vez mais limitadas para quem treme só de pensar num Presidente Trump. O partido parece ter lido mal a sociedade americana, e há pelo menos um documento que sustenta esta ideia.

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Donald Trump tem do seu lado uma multidão de novos eleitores Scott Olson/AFP

Preocupada com a possibilidade de um desastre nas eleições gerais para a Casa Branca, em Novembro, a direcção do Partido Republicano encomendou um relatório que surpreende pelas suas recomendações duras e directas, capazes de deixar em pânico o famoso mestre da manipulação Humphrey Appleby, da série Sim, Sr. Ministro: "Entre os passos que os republicanos devem dar em relação à comunidade hispânica, devemos adoptar e defender uma abrangente reforma da imigração. Se não o fizermos, o apelo do nosso partido vai continuar a encolher até se limitar às suas bases eleitorais nucleares."

A autocrítica foi feita num documento com cem páginas intitulado "Projecto para o Crescimento e Oportunidade", a pedido do presidente do partido, Rince Proebius, e assinado por cinco dos seus mais destacados membros e dirigentes, todos ligados à linha mais tradicional — o chamado establishment —, e alguns muito próximos da família Bush.

Chegados a Março de 2016, dias depois de o polémico magnata Donald Trump ter aproveitado os bons resultados das primárias na Super Terça-feira para ficar com a porta da nomeação escancarada, os líderes do Partido Republicano, que preferem um candidato mais consensual, estão em pânico. Mas a verdade é que não têm de sair da sala onde se costumam reunir para encontrar culpados. Afinal, o "Projecto para o Crescimento e Oportunidade" foi publicado em Março de 2013, quatro meses depois de Mitt Romney se ter espetado contra uma parede chamada Barack Obama e de não ter conseguido recuperar a Casa Branca para o GOP (Grand Old Party, ou Partido Republicano, que tem como mascote um elefante). Afinal, o elefante que entrou pela sala do Partido Republicano adentro, chamado Donald Trump, está cada vez mais perto de se transformar num sapo de proporções épicas que todos terão de engolir, e muitos analistas acreditam que foi a vontade desesperada da direita de acompanhar a mudança pós-Obama que lhe abriu as portas.

Renovar o partido

Depois dessa derrota de Mitt Romney, o partido carregou no botão de pânico e tentou por todos os meios definir uma estratégia que impedisse o descalabro de uma nova derrota um ano mais tarde, nas eleições para o Congresso, em Novembro de 2013, temendo não conseguir roubar a maioria ao Partido Democrata no Senado e ainda por cima arriscando perder a maioria na Câmara dos Representantes. O relatório pedido pela liderança do Partido Republicano surgiu como um grito de alerta: como se tinha visto na derrota de Mitt Romney, era preciso abrir o partido a uma nova geração de eleitores republicanos, com opiniões menos dogmáticas sobre o casamento gay ou o aborto, e aceitar que a demografia do país já tinha mudado mais do que a cor do cabelo de Barack Obama.

Como seria de esperar, essas recomendações da liderança do Partido Republicano foram olhadas de lado pelos políticos que tinham acabado de chegar ao Congresso precisamente com a ajuda do eleitorado contrário — os ultraconservadores do Tea Party, dos quais o actual candidato à nomeação Ted Cruz é um dos mais distintos representantes.

A ideia era renovar o Partido Republicano, trazê-lo para o século XXI, o século das redes sociais, da igualdade de género, do respeito pela diversidade, e empurrar para a linha da frente gente como Marco Rubio, que começou por ser apoiado pelo Tea Party mas que rapidamente passou a ser visto como um jovem aspirante ao establishment por defender essa reforma da imigração que o próprio establishment estava decidido a aceitar.

Falava-se muito de Jeb Bush, que tinha o peso daquele apelido mas era casado com Columba Garnica Gallo, nascida em León, no México, e até sabia falar muito bem espanhol; em Rand Paul, o herói da ala libertária, que tanto se sentava a falar de negócios com um pequeno empresário como com um defensor da legalização da marijuana; ou de Marco Rubio, o jovem senador filho de pais cubanos, com boa imagem televisiva e amante de música electrónica depois de uma incursão pelo hip-hop na adolescência.

Entre a derrota de Novembro de 2012 e o relatório de Março de 2013, poucos ligavam ao que Donald Trump ia escrevendo na sua conta no Twitter — a mesma conta que agora serve para alimentar notícias inteiras e para preencher importantes segmentos de entrevistas e debates televisivos. Nessa altura, Donald era apenas o maluquinho que teimava em não acreditar que Barack Obama tinha nascido nos Estados Unidos, e estava mais entretido a despedir concorrentes no seu sucesso televisivo O Aprendiz do que a preparar-se para abalar as estruturas do Partido Republicano e dos Estados Unidos daí a pouco mais de um par de anos.

Tweet revelador

Ou estava? Numa mensagem publicada no Twitter no dia 18 de Março de 2013, logo após a publicação do relatório do Congresso Nacional Republicano (RNC na sigla original) que pedia mais tolerância e abertura às minorias no partido, Trump escrevia isto: "Um novo relatório do RNC pede que se defenda uma ‘reforma abrangente da imigração’. O RNC tem algum desejo de morte?" A mensagem, que foi desenterrada pelo site do jornal Politico e que ainda está online, tinha na tarde de sábado apenas 63 republicações e 44 "gostos" quase três anos depois, quando actualmente poucos são os tweets de Trump que não atinjem os quatro, cinco, seis ou sete mil "gostos" em apenas poucos minutos ou horas.

Entre as pouquíssimas respostas que Donald Trump teve a essa mensagem em 2013 destacam-se duas que, lidas num momento em que o magnata parece destruir tudo e todos à sua passagem nas primárias, indicam que o Partido Republicano pode ter feito — como diria o conselheiro Humphrey Appleby — um acentuado desvio em relação ao que se convencionou designar por realidade.

"O estudo mostrou-lhes que eles não percebem nada do que se está a passar, e agora querem provar que não sabem mesmo", escreveu o utilizador Monty H. Mathis, um "polícia reformado, veterano da Força Aérea, amante da [moto] FJR1300 e de charutos" que "não gosta nada do politicamente correcto". Outra utilizadora, Emma Brokow, dizia que os políticos não estavam a ouvir os eleitores, antecipando um dos argumentos centrais da actual campanha de Trump: "Qual é a razão para amnistiar 11 milhões de ilegais? Lá vão mais empregos e dinheiro para eles!"

O problema da estratégia proposta em 2013 é que não serviu de nada até agora, como se pode ver pela retórica extremista da actual campanha — Trump levou o discurso para áreas perigosas, mas quase todos foram atrás deles, à excepção do governador do Ohio, John Kasich, que é o último nas sondagens —, mas pode vir a ficar conhecido como um documento que anteviu o fim do Partido Republicano como o que conhecemos. Ainda ninguém pode afirmar que Trump vai ser o nomeado, e muito menos se vencerá as eleições gerais, mas já há um derrotado certo — o establishment republicano.

"Se Trump for nomeado e perder de forma espectacular [contra Hillary Clinton ou Bernie Sanders], penso que se pode dizer que nós estávamos certos", disse ao Politico Ari Fleischer, antigo responsável de comunicação na primeira Adminstração de George W. Bush e um dos autores do relatório de 2013. Mas se Trump for o nomeado do Partido Republicano e vencer as eleições gerais, o partido não ficará muito melhor, dividido entre pelo menos quatro alas: o actual establishment, o Tea Party, o Trumpismo e uma mistura das últimas duas correntes. Uma composição no Congresso que dará constantes dores de cabeça aos líderes partidários nos vários momentos em que for preciso unir os congressistas que se revêem no relatório de 2013 e os congressistas que desprezam o que lá está escrito com a força de um muro que vai crescendo três metros em altura a cada tweet de Donald Trump.

Tiros no pé

Quase todas as opções do Partido Republicano parecem um antecipado tiro no pé. Para travar o sucesso do magnata, os seus inimigos no interior do partido estão a estudar uma série de opções. Depois de a primeira ter falhado — a desistência de vários candidatos e o apoio declarado a apenas um deles contra o magnata —, a estratégia é agora a oposta, como veio anunciar Mitt Romney na sexta-feira: votar em Marco Rubio, Ted Cruz e John Kasich onde eles forem mais fortes para dispersar votos e esperar que Donald Trump não chegue à Convenção do partido, em Julho, com os 1237 delegados necessários para a nomeação. Se isso acontecer, pelo menos Ted Cruz e Marco Rubio terão delegados suficientes para disputarem a nomeação a Donald Trump, mas até este cenário pode ser catastrófico para o partido — ou Trump triunfa numa guerra aberta contra o establishment, ou Trump perde essa guerra e leva consigo uma multidão de novos eleitores republicanos ou antigos eleitores descontentes que vão olhar para a Convenção disputada como uma facada nas costas do seu ídolo.

Há uma outra opção viável, que só a falta de memória pode transformar numa vitória do establishment: a nomeação de Ted Cruz, um verdadeiro ultraconservador que tem uma política de imigração ainda mais dura do que a de Donald Trump, e que representa tudo o que o establishment não quer — só para se ter uma ideia, o Partido Republicano está em maioria no Senado e Ted Cruz não contou com a recomendação de voto de um único senador do seu partido.  

A melhor opção para o establishment do Partido Republicano parecer ser uma que o profundamente religioso ex-candidato Ben Carson estaria disposto a propor de bom grado: rezar. Ou, por outras palavras, esperar que o senador Marco Rubio desate a vencer delegados em estados onde surge muito atrás de Donald Trump nas sondagens.

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