Quer construir à beira Tejo? Amplie, não construa de novo, e verá o que ganha

Câmara de Lisboa fez uma interpretação do PDM que permite a construção de uma frente de betão de dez metros de altura e 100 metros de extensão em frente ao Tejo. Arquitectos e urbanistas dizem que essa interpretação não faz sentido.

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Os actuais concessionários daqueles espaços foram autorizados a demolir a quase totalidade dos edificios térreos existentes Público

A solução é simples. Se dispõe de um edifício na frente ribeirinha de Lisboa e está a pensar demoli-lo para construir um novo, mais espaçoso e adequado às suas actividades, esqueça. Mantenha a fachada daquele que lá está e peça à câmara o licenciamento de uma obra de alteração e ampliação. Nem imagina o que vai ganhar.

Teoricamente poderá aumentar a área de construção até onde quiser, desde que, na vertical, não ultrapasse os dez metros de altura da fachada. Para os lados não há problema. Terá naturalmente a limitação do terreno de que dispõe, certamente por concessão da Associação de Turismo de Lisboa (ATL), à qual o município entregou a gestão dos espaços que eram da Administração do Porto de Lisboa e agora são seus.

Também terá as restrições que o Plano Director Municipal (PDM) impõe em relação à proximidade do Tejo, à extensão das frentes edificadas e ao sistema de vistas. Fora isso é só crescer. E poderá criar tantos pisos quantos os regulamentos autorizarem dentro dos dez metros da altura de fachada — em princípio três.

Mas se se lembrar de requerer o licenciamento de uma construção nova que venha substituir o edifício actual, então ficar-lhe-á cara a ideia: o novo edifício não poderá ir além da área total de construção pré-existente e terá que ficar pelos dois pisos.

Esta foi pelo menos a interpretação do nº 2 do artº 53º do regulamento do PDM que os serviços de Urbanismo dependentes do vereador Manuel Salgado adoptaram para viabilizar a ampliação dos antigos restaurantes BBC e Piazza di Mare, em Belém.

Graças às propostas aprovadas por maioria numa reunião de câmara de Junho de 2015, os actuais concessionários daqueles espaços (grupo hoteleiro Sana/Azinor) foram autorizados a demolir a quase totalidade dos edificios térreos existentes, construindo no seu local três pisos com uma superfície total de pavimento que quase duplica aquela que lá estava. E se em vez do indicador superfíce de pavimento, se utilizar o da área total de construção de que fala o artº 53º do PDM, o aumento é ainda mais significativo.

Ora essa norma admite, para os espaços ribeirinhos, a “construção de novos edifícios (...) por substituição dos edifícios pré-existentes, desde que não se verifique um aumento da área total de construção, os novos edifícios tenham uma altura de fachada máxima de dois pisos e não superior a 10 metros (...)”.

Relativamente à ampliação dos edifícios aí existentes, o PDM nada diz. Daí parece resultar que das duas uma: ou essas ampliações não são permitidas, ou então, a sê-lo, terão de se conter dentro dos limites fixados na citada norma para os novos edifícios.

Perante a verosimilhança desta última leitura, o PÚBLICO perguntou há alguns meses à câmara se tinha aprovado um projecto que viola o PDM, atendendo ao aumento da área de construção aprovado. A resposta chegada dias depois da publicação do artigo é taxativa: “Não existe violação do PDM.” 

Para explicar este entendimento, os serviços de Manuel Salgado sustentam que “as regras do nº 2 do artº 53º referem-se apenas à construção de novos edifícios por substituição dos edifícios pré-existentes.”  E acrescentam: “A reabilitação de edifícios existentes é condicionada a que a altura de fachada não ultrapasse os 10 metros”, sendo que “no caso em apreço o aumento da área de construção é conseguido através da diminuição dos pés direitos interiores”.

Esta interpretação, contudo, é posta em causa por vários urbanistas e arquitectos ouvidos pelo PÚBLICO. 

Urbanistas críticam
“Não me parece haver grandes dúvidas de interpretação do nº 2 do artº 53º do PDM de Lisboa”, afirma Pedro George, Coordenador da Área Disciplinar de Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa. Na opinião deste arquitecto doutorado em planeamento urbano, “as restrições que se aplicam aos edifícios ‘novos’ estendem-se aos pré-existentes que desejam requalificar-se a partir de uma demolição parcial do existente e ampliar (áreas ou pisos)”. 

De resto, acrescenta Pedro George, “não faria  qualquer sentido limitar os edifícios novos e deixar os existentes ampliar-se à vontade do freguês...”.

No mesmo sentido pronuncia-se Paulo Correia, Professor do Instituto Superior Técnico, antigo presidente da Associação dos Urbanistas Portugueses e antigo director-geral do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Urbano. “Em princípio, não pode haver aumento da área de construção pré-existente [seja para edifícios novos, seja para reconstruções], embora se preveja um regime excepcional a decidir discricionariamente” pela câmara municipal. 

Paulo Correia nota ainda que “a protecção das vistas não deve ser só entendida como limitação da altura dos edifícios da frente ribeirinha, mas também por não se construírem edifícios paralelos ao rio em frente contínua”.

Outros especialistas ouvidos pelo PÚBLICO, que pedem para não ser identificados, entendem mesmo que, nos espaços ribeirinhos de Lisboa, não são permitidas quaisquer ampliações, porque o PDM nem sequer as contempla e porque as obras de alteração não podem implicar aumentos de áreas ou de pisos. 

Isso mesmo se depreende do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (DL 555/99) que define “obras de alteração” como sendo aquelas “de que resulte a modificação das características físicas de uma edificação existente, ou sua fracção, designadamente a respectiva estrutura resistente, o número de fogos ou divisões interiores, ou a natureza e cor dos materiais de revestimento exterior, sem aumento da área total de construção, da área de implantação ou da altura da fachada”.

Nesta perspectiva, as obras de alteração nos espaços ribeirinhos  só podem ser autorizadas se forem objecto das mesmas condicionantes previstas para os edifícios novos.

Na hipótese de o entendimento adoptado pela câmara para os restaurantes BBC e Piazza di Mare estar de acordo com o PDM, observan os mesmos especialistas, seria sempre possível evitar as condicionantes impostas aos edíficios novos recorrendo à figura da alteração/ampliação, mesmo que, como é o caso em Belém, da construção pré-existente nada restasse a não ser uma parte das fachadas.

A única possibilidade que o artº 53 do PDM admite para se aumentar a área e o número de pisos nos espaços ribeirinhos consiste na declaração, pela câmara, de que as obras previstas “revestem excepcional importância para a cidade”. Além disso, é preciso que “respeitem o sistema de vistas.”

Neste caso nunca foi invocada a figura da “excepcional importância para a cidade”. Quanto ao respeito pelo sistema de vistas, nem sequer foram apresentados os estudos de impacte visual exigidos pelo PDM.

Embargo mantém-se
Mesmo ao lado dos antigos restaurantes está em construção o Centro de Artes da Fundação EDP cujo projecto também viola diversas normas do PDM. Neste caso, todavia, a câmara deliberou em 2013 atribuir-lhe o estatuto de excepcional importância para a cidade, decisão que foi sujeita a debate público como a lei exige. 

Antes disso tinha aprovado um pedido de informação prévia que autorizava a EDP a construir um outro projecto muito contestado por violar o PDM e que suscitou severas críticas do Provedor de Justiça. Foi na sequência desta posição do provedor que a EDP decidiu reformular a proposta e a câmara declarou a sua excepcional importância, tornando possível a sua aprovação.

No caso dos antigos BBC e Piazza di Mare, a autarquia não só rejeitou uma primeira proposta dos seus serviços para que tal procedimento fosse equacionado — ainda que a importância da obra fosse incomparavelmente mais duvidosa do que a da EDP — como aprovou o projecto sem qualquer apreciação aprofundada face aos imperativos do PDM. 

No essencial, escudou-se na sua viabilização prévia por parte da ATL, entidade privada que não tem qualquer competência de licenciamento. Foi aliás a ATL que o subconcessionou ao grupo Sana por 50 anos, sem recurso a hasta pública, num quadro que suscitou fortes críticas da oposição camarária.

No final de Janeiro, na sequência de uma  notícia do PÚBLICO que apontava o facto de a altura aprovada ter sido ultrapassada, a câmara embargou a obra por incumprimento do projecto. Neste momento os trabalhos continuam suspensos, mas os promotores estão a tentar que o embargo seja levantado, argumentando, entre outras coisas, que o terceiro piso, já construído, não deve ser contabilizado para medir a altura da fachada. 

Na sua perspectiva trata-se de um piso recuado que não deve ser tido em conta. O recuo em questão fica-se no entanto por cerca de meio metro em relação à vertical da fachada.

Paralelamente ao desembargo dos trabalhos, os promotores aguardam a aprovação de projectos de alterações que prevêem novos acréscimos das áreas totais de construção e da superfície de pavimento licenciadas. Antes de serem demolidos, os dois restaurantes somavam uma superfície de pavimento de 1886 m2.  Os projectos aprovados contemplam um total de 3492 m2 e as alterações agora propostas, só no caso do BBC, apontam para mais 198 m2. A ligar os dois haverá um passadiço aéreo, ficando o conjunto com 100 metros de comprimento.

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