O que se está a passar na América?

Trump é a expressão de um mal mais profundo que afecta as nossas democracias.

1. Por muito que isso perturbe os espíritos viciados no culto do estereótipo, Donald Trump não provém da profunda América rural, não se distinguiu por uma especial adesão aos valores do conservadorismo de proveniência evangélica e não propõe o regresso a uma política externa fortemente interventiva. Trump proclama as vantagens do proteccionismo comercial e económico, contesta as posições do establishment liberal do Partido Republicano e preconiza uma abordagem completamente diferente do conflito israelo-palestiniano, distanciando-se da tradição de apoio incondicional a Telavive. Para além disto, é grosseiro, xenófobo e ostensivamente populista. O facto de estar muito bem posicionado para alcançar a nomeação republicana para a eleição presidencial de Novembro próximo, surpreende, escandaliza e interpela. O que se está a passar na América?

A resposta mais simples das que têm sido apresentadas aponta para a erosão das classes médias como causa de uma polarização excessiva do confronto político, com a consequente afirmação vitoriosa dos proponentes de ideias extremistas. É possível que assista alguma razão a esta tese, a qual, no fundo, se inscreve na linha – historicamente muito apreciada – que estabelece uma relação de grande proximidade entre um facto sociológico e uma opção política. Nessa perspectiva, a existência de uma classe média robusta com a função de amortecedor social promove a escolha da democracia como regime político preferencial. Parece-me, contudo, que se deveriam ensaiar outras tentativas de explicação, que atendam ao que marca especificamente os tempos que correm.

A proliferação das redes sociais tem vindo a alterar significativamente a natureza e os termos em que decorre o debate público, estimulando formas de representação mental e apelando a práticas linguísticas pouco propícias a um ambiente de moderação e decência, imprescindível para a sanidade da controvérsia política. Qualquer debate pressupõe três ou quatro condições básicas cuja falta acarreta consequências devastadoras. Começa por exigir a prevalência da inteligência crítica sobre a emoção exaltada e termina na observância de um mínimo de respeito pelo adversário e pelas posições por ele preconizadas. Só a partir daí se pode estabelecer um campo de discussão relativamente permeável às ideias adversas e marcado pela preocupação de atribuir a devida solidez à argumentação própria – precisamente o contrário da gritaria, do insulto soez, dos métodos primários de persuasão que hoje ocupam praticamente toda a esfera pública. Os resultados estão à vista.

Donald Trump é o herói do politicamente incorrecto, uma estrela no firmamento do radicalismo anti-elitista, uma expressão do inconformismo extremista na sua versão direitista. Não é precisa muita imaginação para identificar os múltiplos contrapontos fiéis à mesma natureza que pululam no espaço ideológico da esquerda. Têm todos em comum alguns pequenos sinais: a recusa dos consensos (que acham sempre pantanosos), o elogio do extremismo como garante de uma genuinidade política e manifestação de uma ligação directa ao coração do eleitorado, o apelo a uma pureza virginal erigida em categoria moral distintiva. O sucesso que tais formulações têm vindo a obter – e que no caso de assistir ao próprio Donald Trump terá decerto efeitos catastróficos para os Estados Unidos da América e para o Mundo –, não pode deixar de suscitar um questionamento sobre as formas clássicas de organização e comunicação das estruturas políticas convencionais. Estas não têm sabido adaptar-se às exigências presentes, hesitando entre um alheamento suicidário e uma tentativa de mimetismo igualmente condenada ao fracasso. Sinal disso mesmo é a forma como decorrem grande parte dos debates parlamentares no nosso próprio país. O problema não é de hoje, mas tem vindo a acentuar-se. Custa-me dizê-lo, mas raríssima é a ocasião em que vale a pena seguir com atenção um discurso proferido no Parlamento, tão mediana é a forma e tão pouco espessa a substância daqueles que por lá vão debitando. Há obviamente excepções, as quais temo não serem, aliás, devidamente reconhecidas.

Trump não é o produto de um falhanço material da América, ou pelo menos não o é fundamentalmente. Ele e o fenómeno que representa são a expressão de um mal mais profundo, de natureza política, senão mesmo civilizacional, que afecta as nossas democracias. Apesar disso, subsistem fortíssimos mecanismos de resistência inspirados nos melhores princípios de orientação democrática e liberal. É por isso que, em Novembro, Hillary Clinton será muito provavelmente eleita Presidente dos EUA, com tudo o que isso significa de consagração das várias causas e movimentos que a sua figura política exemplarmente representa.

2. Por falar em redes sociais, não posso deixar de exprimir a minha profunda solidariedade a um homem que não conheço pessoalmente, Henrique Raposo, numa altura em que está a ser vítima de uma verdadeira fatwa imposta por uma turbamulta sem eira nem beira que infesta o espaço público português. É preciso possuir uma coragem rara para se ir até ao fim na elaboração de um retrato cruel da região a que estamos familiar e geneticamente ligados, o Alentejo. Neste país de brandíssimos costumes, poucos são os que se atrevem a pôr em causa a iconografia de postal ilustrado com que se autocomprazem ao mesmo tempo as velhas oligarquias e o povo. Este exercício doloroso, que teve por destinatário um Alentejo mítico, poderia fazer-se em relação a qualquer outra região do país. Uma sociedade dotada de verdadeiro espírito crítico sabe conviver com estas situações. Ainda pagamos o preço de séculos de atrofiamento mental.

Eurodeputado do PS. Escreve à quinta-feira

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