De Berlim a Nova Iorque, os fados sentidos de Telmo Pires e Nathalie

Ele é transmontano mas passou quase toda a vida na Alemanha, ela nasceu em Nova Iorque e foi lá que despertou para o fado. Telmo Pires e Nathalie, cada qual a seu modo, chegam até nós em disco e ao vivo, provando que o sentir fadista atravessa fronteiras.

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Telmo Pires: "Marcou-me de uma forma tão profunda que pus o rock e os cabelos compridos de parte" ISMAEL PRATA
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Nathalie: "Com fado eu sentia-me próxima de Portugal” SOFIA RIBEIRO
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capas dos recém-lançados CD de Telmo Pires e Nathalie DR

Fado e Berlim, à partida, não jogam. E, no entanto, foi na capital alemã que Telmo Pires se iniciou no fado. Transmontano, nasceu a 3 de Junho de 1972 em Bragança, mas foi com apenas dois anos e meio para a Alemanha, acompanhando a aventura migratória dos pais. O pai foi antes, esteve lá um ano sozinho, a família seguiu depois. “Foi num dos últimos períodos em que a Alemanha ainda estava a chamar imigrantes, a que chamavam ‘trabalhadores convidados’.” Nasceu em Bragança mas cresceu numa “aldeia pequeníssima, onde nem electricidade havia, era tudo a petróleo, crescia-se no meio dos animais”. O dia da partida para a Alemanha ficou-lhe gravado na memória. Lembra-se de mais tarde, para espanto da mãe, reconstituir tal lembrança. “As minhas avós foram connosco à estação de comboio, era a linha do Tua, as carruagens tinham bancos de madeira. Fomos primeiro para o Porto e daí viajámos para Düsseldorf. Foi no dia de Todos-os-Santos, 1 de Novembro.”

Era para ter ficado na Alemanha apenas por uns tempos, mas ficou 34 anos. “Se tivessem dito ao meu pai, na estação de comboio, que era para ficar lá esse tempo todo, ele não iria." Mas as coisas foram-se encaminhando no sentido de atrasar o regresso. O nascimento de uma menina (a irmã mais nova de Telmo), a necessidade de não perturbar o ensino dos filhos, tudo ajudou. E Telmo ficou. “Acho que falo alemão melhor do que português”, diz ele. “Aprendi-o não na creche, mas na rua.” O português, sempre o falou em casa, com os pais, mas num “transmontano muito forte”.

Na música, envolveu-se cedo. “Comecei a cantar cantigas de Natal na escola.” Em alemão, claro. “Com nove anos, convenci os meus pais a darem-me aulas de piano e órgão. E aos 12 quis comprar a minha primeira viola, acústica, clássica. E comecei a comprar discos com o dinheiro que tinha: Beatles, Rolling Stones… Cresci com a MTV, Madonna, Michael Jackson e isso tudo, e naquela idade a música portuguesa que eu ouvia com os meus pais ficou para trás, é natural.” Foi nas festas do Centro Cultural Português que ele teve contacto com noites de fado, para imigrantes e alemães. Mas era ainda a pop que o atraía, na discoteca do Centro. Devido a uma “grande, grande paixão” por Prince e David Bowie, comprou uma guitarra eléctrica. E começou a escrever músicas.

Variações, Amália, Dulce
A atracção pela música portuguesa foi chegando aos poucos: primeiro, quando ouviu pela primeira vez António Variações, na televisão, numa breve visita a Portugal tinha ele dez anos; depois quando escutou Amália e Carlos do Carmo; e, por fim, cerca dos 20 anos, Dulce Pontes. “Foi na televisão. E marcou-me de uma forma tão profunda que pus o rock e os cabelos compridos de parte.” Depois, nas vindas a Portugal, começou a comprar “tudo o que havia, de fado, de Amália, da Dulce…”

Hoje, agradece aos pais o não ter perdido a ligação à língua e à história portuguesas, porque senão não chegaria onde chegou. E embora fizesse teatro em alemão, depois de sair de casa dos pais essa ligação à língua e à cultura portuguesas nunca se perdeu. O seu primeiro disco, Canto (2001), gravou-o como reacção aos tempos em que, ainda envolvido no rock, ensaiava com um grupo num bunker herdado da guerra. Estudou canto, com uma cantora lírica, e nesse disco cantava em português, inglês, alemão, francês e espanhol. Entre as canções gravadas, Lusitana Paixão, de Dulce Pontes. Depois passou a gravar apenas em português: Passos (2004), Sinal (2009, com a pianista alemã Maria Baptist, também compositora), Fado Promessa (2012) e, finalmente, Ser Fado (2016), com produção de David Zaccaria, que ele conheceu através de uma sucessão de visitas a Portugal.

Ser Fado, que foi apresentado ao vivo no Museu do Fado (onde ele apresentara também o disco anterior), já chegou às lojas portuguesas e vai ser lançado agora em Berlim. Mas “o alemão”, como por brincadeira lhe chamaram nos meios fadistas do Café Luso, vive agora mais permanentemente em Lisboa, embora mantenha ligações na Alemanha. O disco, a par de temas de sua autoria, e de outros com letras de Nuno Miguel Guedes ou Jorge Fernando, tem fados clássicos (como As mãos que trago ou Mal-aventurado, com poemas de Cecília Meireles e Bernardim Ribeiro, ambos com música de Alain Oulman) e um tema original de António Variações, Ao passar por Braga abaixo. Foi gravado em Portugal, o disco, mas editado com chancela alemã, da Traumton Records.

No Tivoli, com Camané
Nathalie, filha de emigrantes portugueses e nascida em Nova Iorque, a 29 de Abril de 1986, lança agora o seu segundo disco, Fado Além, com edição de autor e com distribuição da Sony Music.

O pai, músico (“tocava em festas, baptizados”), levava-a às noites de fados nas comunidades portuguesas de Newark. Desde muito cedo, tinha ela três ou quatro anos. “Ele gostava muito de fado, mas eu era ainda pequena e não entendia muito bem o que era o fado, era muito pesado para mim.” Mais tarde, já com 13 anos, convidaram-na a cantar acompanhada por guitarristas. “O meu pai deu-me um disco com os maiores êxitos da Amália e eu fui, cantei, e descobri a magia do fado.” Mas o que dizia então o fado a uma adolescente portuguesa nascida em Nova Iorque que ouvia então sobretudo as baladas de Céline Dion ou Mariah Carey? “Fechava-me no quarto e tentava cantar até chegar às notas altas, sempre gostei muito de cantar as músicas mais difíceis. Então com o fado achei que podia transmitir esse sentimento e intensidade de outra forma”.

A reacção do público foi determinante para essa escolha. Mas, ao ouvir a voz de Amália, não foi só o canto que a cativou, foram também as palavras. “Os poemas. A Gaivota foi um dos primeiros fados que cantei, embora naquela idade não entendesse ainda bem a letra. Para mim, ‘se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa’ era aquela saudade de Portugal.” Amália morreu no ano em que Nathalie começou a cantar. “Havia muitos documentários sobre ela.” E isso ajudou-a a perceber melhor Amália e o fado. “Os temas da Céline Dion e da Mariah Carey cantava-os no quarto, não os apresentaria a um público. Mas com o fado eu sentia-me próxima de Portugal.”

Nathalie não se lembra da primeira vez que cantou num palco, até porque isso se mistura, nas suas lembranças, com as muitas vezes que, em pequena, nas festas, pegava num microfone desligado e ficava ali a fingir que cantava. O seu primeiro disco, Corre-me o Fado nas Veias, foi editado em 2007 e tinha, claro, fados. De Amália, na sua maioria, e três que o pai lhe escreveu. A ideia não era propriamente comercial, mas ficar, nas palavras do pai, “com uma lembrança”. Assinava-o ainda como Nathalie Pires. Mas as músicas espalharam-se na Internet, tiveram bom acolhimento, e isso levou-a ao disco que agora lança em Portugal, a 4 de Março, Fado Além. “Desde o meu primeiro disco cresci muito, a minha voz mudou, comecei a representar Portugal nos Estados Unidos, a cantar para americanos e portugueses, e isso deu-me outra responsabilidade.” Tem clássicos do fado (como Estranha forma de vida ou A voz que eu tenho), mas também originais com letras de Amélia Muge, Vitorino, João Paulo Esteves da Silva, Mário Cláudio (Diário, com música de Ricardo J. Dias, com Bernardo Couto na guitarra portuguesa, já em vídeo no Youtube) e Telmo Pires (“o alemão”).

Contabilista de profissão, Nathalie diz que a contabilidade é a sua realidade e o fado a sua terapia. “A contabilidade dá estabilidade, mas o fado é o que me dá vida, com o fado sinto-me 100% feliz.” Em Portugal, Fado Além será apresentado em três salas. Esta quinta-feira, dia 3, em Coimbra (Auditório do Conservatório de Música, 21h30), dia 5 de Março em Oliveira do Bairro (Quartel das Artes, 21h30) e dia 8 em Lisboa (Tivoli BBVA, 21h30), com Camané como convidado especial. “Conheci-o em Brooklyn, ele ia cantar na Opera House e eu ia cantar numa sala mais pequena. Fui ouvi-lo cantar para americanos, só tinha 15 minutos, e ele conseguiu parar o tempo.”

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