Os romanos entre línguas de flamingo e vulvas de porca

Existe um lado exótico neste livro de receitas do império romano. Mas tudo aparece contextualizado. Até porque há toda uma história da alimentação romana que passa pela frugalidade e que, por muito diferente que seja, moldou também os nossos hábitos.

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O Livro de Cozinha de Apício — um breviário do gosto imperial: o retrato de uma civilização através da mesa Leemage/Corbis

O que é que aprendemos com um livro de receitas cuja recolha inicial é atribuída a uma personagem lendária com uma identidade envolta em controvérsia: supostamente um romano de nome M. Gauius Apicius, nascido em 25 a.C.? Inês de Ornellas e Castro, responsável pela introdução, tradução e comentários da mais recente edição da obra De Re coquinaria, agora apresentada como O Livro de Cozinha de Apício – um breviário do gosto imperial, na Relógio d’Água, explica que o que aqui temos é o retrato de uma civilização através da mesa.

Comecemos então pela personagem de Apício, criador de receitas de molhos a que corresponde o corpus inicial do livro. Segundo a investigadora, “teria sido um dos impulsionadores da censura culinarum, uma moda apostada em estabelecer critérios de qualidade para os produtos alimentares e aconselhar sobre as formas mais adequadas para cozinhá-los, que se intensificava no século I a.C.”. Apício, prossegue, “ter-se-ia rodeado por uma corte de jovens aristocratas, a quem industriava na arte de cozinhar, ócio que se afigurava prejudicial aos olhos de Séneca”.

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Segundo a lenda, seria muito inventivo na cozinha e empenhava-se em criar iguarias exóticas como línguas de flamingo, rouxinol ou pavão, cristas de aves vivas ou calcanhares de camelos (embora nenhuma delas conste neste livro). É possível também que tenha sido o inventor de uma primeira versão de foie gras, pois engordava gansas com figos secos para lhes aproveitar os fígados.

Mas, exotismos à parte, os romanos, pelo menos no início, eram um povo bastante frugal, cuja alimentação se baseava nas papas, “antepassadas do pão”, feitas com grãos torrados e humedecidos e depois com farinha de trigo, e que “eram simplesmente cozidas em água e sal ou leite, por vezes melhoradas com leguminosas, sobretudo favas ou lentilhas ou hortaliças”. O peixe era comido nas áreas costeiras.

O consumo de sal era elevado e, mais tarde, o de condimentos e temperos também. A alimentação dos romanos só ganha sofisticação com o contacto com o mundo helénico depois da conquista do Mediterâneo Oriental. “Quando chegamos à época imperial (27 a.C.) tudo converge para que Roma atinja o seu apogeu na arte da culinária.” Na forma de estar à mesa, deixaram de atirar comida para o chão para a oferecer aos defuntos e passaram a desenhá-la nos mosaicos, numa oferenda simbólica. 

Apesar do grande número de receitas apresentadas, a autora refere que em 90% delas está presente o molho de peixe fermentado, liquamen ou garum – o que parece indicar que mesmo pratos diferentes poderiam ter sabor semelhante.

Peguemos então em algumas receitas mais surpreendentes do livro de Apício. Por exemplo, o poético vinho de rosas – os vinhos condimentados são uma das influências da sofisticação helénica. Diz-nos o autor para, “depois de extrair a unha branca”, enfiarmos “pétalas de rosas num fio, de modo a formar coroas” e mergulharmos o maior número possível, para estarem em vinho durante sete dias.

Na “cozinha apiciana”, explica Ornellas e Castro, os vinhos são quase sempre doces e de sabor forte. O vinho puro, amargo (sempre branco e geralmente cortado com água), raramente era usado como condimento. Recorria-se sobretudo ao mosto cozido, reduzido pela fervura – a autora lembra que o arrobe, xarope concentrado a partir do mosto da uva, ainda hoje se faz em algumas aldeias da Beira Interior – e aos vinhos aromatizados com mel, frutas ou rosas. Quanto a este, Apício recomenda que se “use rosas sem humidade do orvalho” e que no final se adicione mel.

O livro ensina-nos ainda aprender a preparar vinho branco a partir  do tinto, a usar azeite da Hispânia fazendo-o passar por azeite da Libúrnia ou a conservar a carne sempre fresca sem a salgar. Mas vejamos só mais duas receitas exóticas. Para o molho de flamingo, deve-se começar assim: “Depene, lave e prepare um flamingo, ponha-o numa panela, junte água sal e aneto e um pouco de vinagre”. O prato leva ainda, entre outras coisas, mosto cozido e tamâras de Cárias. Apício terá sido “um dos primeiros gourmets a lançar o flamingo em moda”, recorda a autora.  

E para quem tiver curiosidade sobre uma iguaria chamada “vulvas de porcas estéreis”, aqui fica a explicação: “Uma das partes da porca a que os romanos davam mais valor era a vulva, também entre nós regionalmente conhecida como ‘barrigueira’. Por porca estéril entenda-se virgem, a que não está em idade de cobrição, ou então castrada. Neste caso, punha-se o animal alguns dias de jejum e suspendia-se pelas patas dianteiras para lhe cortar a matriz ou fazer incisões na vulva que, ao cicatrizar, obstruía a entrada da vagina.” (A autora recorda que em Itália ainda hoje se comem não vulvas mas tetas de porca num prato chamado “bollito misto com salsa verde”).

Por muito distante que nos pareça esta culinária, ela é, escreve Inês de Ornellas e Castro, “imprescindível” para compreendermos o que era a cozinha medieval na Península Ibérica. E, se as receitas nos chegam sem quantidades e algumas incompletas, “a verdade é que já não somos os destinatários daqueles enunciados”. Assim, a esta distância, resta-nos “deduzir das palavras o paladar de uma civilização”.

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