É preciso ser duas vezes mais pobre para se ter bolsa de estudo

Estudo mostra que acesso ao apoio do Estado para estudar no superior ficou mais difícil desde 2010. Percentagem de alunos bolseiros é maior nos institutos politécnicos do que nas universidades.

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Patamar de carência económica para aceder a uma bolsa é hoje de 7770 euros anuais per capita de rendimento da família Bruno Lisita

Os estudantes do ensino superior têm cada vez mais dificuldades para conseguir uma bolsa de acção social. As mudanças feitas na forma como são contabilizados os rendimentos das famílias fizeram com que seja hoje necessário ser quase duas vezes mais pobre do que em 2010 para receber a bolsa mínima, que suporta o custo das propinas. As conclusões são de um estudo da Federação Académica do Porto (FAP), que é apresentado esta quarta-feira.

No último ano lectivo, houve 67.888 estudantes com bolsa de estudo no ensino superior, o que significa que foram menos 4600 alunos apoiados face a 2010/2011. Nesse ano lectivo, foi alterada a forma como é contabilizado o dinheiro dos orçamentos das famílias para o cálculo da bolsa, o que explica esta diminuição. Até então eram considerados os rendimentos líquidos, existindo ainda formas de abatimentos, para despesas com saúde em caso de doença crónica ou prolongada, bem como gastos com arrendamento ou compra de habitação, por exemplo. Actualmente, essas deduções desapareceram e são tidos em conta os rendimentos brutos.

Ou seja, hoje os serviços de acção social das universidades e politécnicos têm em conta uma realidade financeira das famílias muito diferente da que era analisada há cinco anos, o que justifica alterações no patamar de carência económica que um aluno tem de ter para ser apoiado. O nível de pobreza exigido para atribuir bolsa a um estudante é hoje “muito mais severo do que era no passado para receber o mesmo apoio”, conclui o estudo da FAP. Na prática, o estudante que, até 2010, recebia a bolsa mínima tinha “quase o dobro dos rendimentos daquele que hoje recebe” o mesmo apoio, acrescenta ao PÚBLICO o presidente daquela estrutura, Daniel Freitas.

Esta conclusão “dá força”, acredita o mesmo responsável, à principal reivindicação que os estudantes do ensino superior têm vindo a apresentar para a revisão do regulamento de atribuição de bolsas de estudo: o cálculo deve voltar a ser feito tendo por base os rendimentos líquidos das famílias. “Seria a solução mais aproximada à realidade da economia familiar, já que reflecte os rendimentos efectivamente disponíveis do agregado”, defende o presidente da FAP.

A alteração da forma de contabilização de rendimentos é mesmo o factor com maior impacto na variação do número de estudantes do ensino superior que podem ter acesso a bolsas de estudo. Mesmo que tenham mudado as regras, o patamar mínimo de carência económica em termos nominais tem-se mantido estável, desde 2010, sempre ligeiramente abaixo dos 7000 euros anuais per capita de rendimento dos elementos do agregado familiar. No actual ano lectivo, houve a maior actualização dos últimos anos neste valor, que subiu para os 7770 euros, o que levou a um aumento de 12 mil estudantes bolseiros. Ainda assim é considerado “insuficiente” para a FAP.

Este trabalho do centro de estudos da estrutura associativa do Porto analisa os dados sobre a atribuição de bolsas de estudo durante as últimas duas décadas. O documento é apresentado esta quarta-feira, no Instituto Politécnico do Porto – numa cerimónia em que participa o secretário de Estado do Ensino Superior do anterior Governo, José Ferreira Gomes. Segundo Daniel Freitas, o trabalho feito nos últimos meses permite concluir que o sistema de atribuição de bolsas está hoje “mais exigente”.

Além da alteração das regras de contabilização dos rendimentos das famílias, a outra grande mudança que tornou mais difícil o acesso à bolsa foi o critério de aproveitamento escolar mínimo que um aluno tem de cumprir para continuar a ser apoiado no ano seguinte. Entre 1997 e 2010, os estudantes tinham de ser aprovados a 40% das disciplinas a que estavam inscritos, mas esse patamar aumentou, primeiro para 50%, fixando-se actualmente nos 60%. A FAP considera, no entanto, que a maior exigência neste domínio “faz sentido”.

O documento faz ainda um retrato da população que recebe bolsas de estudo no ensino superior. As instituições localizadas fora das grandes áreas urbanas são as que têm maior percentagem de bolseiros. Dentro destas, assumem especial relevo os institutos politécnicos. Em 2013/2014, último ano lectivo para o qual existem estes dados, 16,8% dos estudantes do ensino superior tinham bolsa de estudo, mas, se for contabilizado apenas o sector politécnico, esta percentagem ascende a 22,5% dos inscritos. “Estes dados confirmam a percepção de que a rede politécnica absorve estudantes com maiores carências económicas”, sublinha o estudo da FAP. As excepções são a Escola Superior de Enfermagem do Porto e a Universidade do Minho que, apesar de se encontrarem em áreas urbanas, recrutam muitos estudantes de todo o Norte do país, incluindo de muitos contextos desfavorecidos em termos sócio-económicos.

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