FIFA: A famiglia do futebol

Na ressaca de um ano traumático, com vários dirigentes de topo acusados de corrupção, o organismo que tutela o futebol mundial prepara-se para as eleições mais importantes da sua história. Joseph Blatter vai tornar-se parte do passado da FIFA, mas as marcas do seu reinado de 18 anos vão perdurar.

Durante os primeiros 26 anos de existência não se percebeu muito bem para o que servia a FIFA, o organismo máximo do futebol mundial. Depois chegou a legitimidade, com a realização do primeiro Campeonato do Mundo em 1930, e com ele abriu-se todo um universo de negócios, que se foi ampliando com o objectivo de espremer o desporto mais popular do planeta até ao último cêntimo. É precisamente desse apelo global exercido pelo futebol que vem o poder de uma elite nebulosa, que vê cifrões onde os adeptos vêem paixão.

Os hábitos enraizados durante décadas são mais difíceis de abandonar, e é por isso que as sequelas do ano traumático que a FIFA viveu em 2015, com vários dirigentes implicados pela justiça em investigações a casos de corrupção, continuam a fazer-se sentir. Mais do que uma lufada de ar fresco, as eleições da próxima sexta-feira vão representar uma mudança — mas ninguém sabe muito bem em que sentido.

Como todos os países têm o mesmo peso na FIFA, tenham muita ou pouca história futebolística, tenham só algumas centenas ou vários milhões de praticantes, há forte concorrência pelos lugares na estrutura, que são especialmente apetecíveis porque a Federação Internacional de Futebol é uma máquina de fazer dinheiro. E o Campeonato do Mundo a sua galinha dos ovos de ouro: o Mundial 2014, no Brasil, gerou receitas superiores a 4000 milhões de dólares (3600 milhões de euros), segundo dados da própria FIFA. No relatório financeiro salienta-se que grande parte do dinheiro foi reinvestido no futebol, através de programas de apoio e desenvolvimento, mas isso pode ser lido como um eufemismo para dizer que muito dinheiro foi distribuído por muita gente.

A FIFA organiza dez torneios masculinos e cinco femininos, o que dá uma ideia da dimensão dos valores movimentados. O Mundial é, obviamente, a jóia da coroa, mas para todos os outros há igualmente negociação de direitos televisivos, direitos de marketing e licenciamento, venda de bilhetes, patrocínios, processos de candidatura. Ficar associado na memória colectiva a um momento de emoção como o Campeonato do Mundo tem valor incalculável para as marcas, para além dos benefícios da exclusividade em tudo o que está relacionado com o torneio. As questões morais passam para segundo plano. “Na dúvida, um patrocinador prefere deitar-se com um parceiro corrupto do que perder totalmente um negócio de ouro. Se a Coca-Cola alguma vez torcer verdadeiramente o nariz à FIFA, então não poderá a Pepsi ser abraçada? E quando a Adidas ou a Sony ameaçarem renunciar, então estarão prontas a Nike e a Samsung”, apontou o jornalista alemão Thomas Kistner no livro FIFA Máfia (Marcador Editora, 2013).

Os direitos de comercialização relacionados com torneios de futebol na América Latina, bem como dos jogos de qualificação para o Campeonato do Mundo, estão na base do abanão sem precedentes que a família FIFA sofreu em 2015. O primeiro golpe surgiu na madrugada de 27 de Maio, quando o organismo se preparava para ir a eleições, e foi o mais duro pelo seu simbolismo. Dois dias antes de Joseph Blatter ser eleito para um quinto mandato na presidência, as autoridades implicaram nove altos responsáveis da FIFA e detiveram sete deles num hotel de luxo em Zurique, na sequência de uma investigação da justiça dos EUA (que contou com a colaboração de Chuck Blazer, ex-membro do comité executivo da FIFA que em 2013 se declarou culpado do envolvimento num esquema de corrupção) às ligações entre dirigentes do futebol e empresas de marketing.

Blatter chegou à FIFA com 39 anos. Está na presidência há 18 JEAN-BERNARD SIEBER/AFP

Três dos caídos em desgraça estavam nesse momento em funções na hierarquia da FIFA — o uruguaio Eugenio Figueredo era vice-presidente do organismo e fazia parte do comité executivo; o brasileiro José Maria Marin desempenhava funções no comité da FIFA para a organização dos torneios olímpicos; e Jeffrey Webb, das Ilhas Caimão, acumulava a vice-presidência da FIFA com a liderança da Confederação da América do Norte, Central e Caraíbas (CONCACAF) e da Federação de futebol das Ilhas Caimão.

Na lista de detidos estava também Jack Warner, que durante anos tivera cargos na cúpula dirigente do futebol mundial. Natural de Trindade e Tobago, tinha sido vice-presidente da FIFA e membro do comité executivo, assim como presidente da CONCACAF. Mais do que isso, era um dos homens fortes do regime de Blatter. Andrew Jennings, jornalista britânico que investigou a FIFA durante mais de década e meia, descreve-o assim em The Dirty Game (Century, 2015, sem edição portuguesa): “Jack rouba. É um ladrão de carreira e isso fê-lo multimilionário. Para esconder os seus roubos, mente. Mente aos colegas no futebol, usa um contabilista para fazer passar-se por auditor e mentir por ele. Durante mais de 30 anos Jack Warner roubou dezenas de milhões de dólares da FIFA. Sepp Blatter deve ter sabido sempre mas pagaria qualquer preço — além do mais, não era o seu próprio dinheiro — para subornar Warner e obter 35 votos cruciais nas eleições presidenciais.”

O camaleão

Nascido em 1936 na pequena localidade de Visp, no sul da Suíça, Joseph “Sepp” Blatter formou-se em Economia e Gestão de empresas. Chegou à FIFA aos 39 anos, quase em simultâneo com João Havelange (eleito em 1974), para desempenhar as funções de director dos programas de desenvolvimento. Antes, tinha feito coisas tão diversas como ser relações públicas para a Associação de Trânsito de Valais ou secretário-geral da Federação suíça de hóquei no gelo. Foi jornalista e estava na relojoeira Longines quando recebeu o telefonema da FIFA.

Blatter subiu a secretário-geral em 1981 e em 1998 chegou à presidência do organismo que tutela o futebol mundial. Em circunstâncias controversas, porque houve acusações de compra de votos e manipulação da eleição que o opôs ao sueco Lennart Johansson, que era então presidente da UEFA.

Thomas Kistner estava presente e revelou alguns detalhes: “Na noite anterior às eleições, que levaram meses a ser preparadas, são distribuídos envelopes grossos no hotel Méridien, no qual está hospedada a delegação africana. No dia seguinte, Blatter vai à frente com 111 votos, contra 80, após a primeira volta. Johansson entrega a vitória com lágrimas nos olhos. É evidente para todos que houve compra de votos em massa. O escritor deste livro está presente quando, na noite após as eleições, o presidente da Confederação Africana de Futebol, Issa Hayatou, dos Camarões, e cinco ou seis representantes das confederações nacionais africanas se vão desculpar junto de Johansson pelo comportamento escandaloso dos seus colegas. Um dos africanos até se esqueceu de levar o seu envelope com o dinheiro quando fez o checkout do hotel – o dinheiro é encontrado por um funcionário da FIFA.”

João Havelange e Blatter: privilégios e clima de ganância mantiveram-se com a passagem de testemunho na presidência da FIFA Reuters

Este tipo de práticas na FIFA não foi inventado por Blatter, já vinha do reinado de Havelange. Foi o brasileiro, ex-atleta olímpico de natação e pólo aquático, que ditou a expansão do Campeonato do Mundo de 16 para 24 e depois 32 equipas, alargando, com isso, o grupo de federações com acesso às receitas milionárias do torneio. Na campanha para a eleição em que derrotou o britânico Stanley Rous, João Havelange percorreu mais de 80 mil quilómetros e visitou 84 das 142 federações que integravam a FIFA. Quando cedeu o lugar a Blatter, o organismo que tutela o futebol mundial tinha meia centena de novos integrantes.

“Durante os seus 24 anos como presidente da FIFA, Havelange teve privilégios extraordinários, quase inacreditáveis. Podia assinar cheques sem qualquer assinatura adicional de outro dirigente. Tinha a autoridade exclusiva de passar cheques aos seus amigos, às pessoas que precisava de subornar — e a si próprio. Mais tarde, passou este privilégio a Blatter. Um luxo especial de que Havelange desfrutava era comprar relógios caros para oferecer a pessoas ricas, especialmente aos dirigentes do Golfo. A cultura de ofertas dos xeques bilionários inclui relógios em ouro, platina e incrustados de pedras preciosas. O mantra na sede da FIFA em Zurique era: ‘Tens de dar para receber’”, conta Andrew Jennings.

Não foi, por isso, de admirar que a ligação brasileira fosse evidente no segundo abanão sofrido pela FIFA em 2015: em Dezembro, a procuradora-geral dos EUA, Loretta Lynch, tornou pública a acusação contra mais 16 indivíduos na investigação ao esquema de subornos, lavagem de dinheiro e fraude. Entre eles dois homens que ajudavam Havelange a controlar o futebol brasileiro, Ricardo Teixeira e Marco Polo del Nero, ambos com passagem pelo comité executivo da FIFA e pela presidência da Confederação Brasileira de Futebol (o primeiro também é seu ex-genro). Sete altos responsáveis implicados estavam em funções na hierarquia da FIFA, fosse no comité executivo ou em algum dos outros 32 comités permanentes da instituição.

“Quem é nomeado, de entre a família do futebol, para uma das cerca de trinta comissões da FIFA tem direito a viagens, reembolso de despesas e ajudas de custo, para se encontrar com estrelas, líderes industriais e personalidades da política. Isso é muito bom. Quem não andar na linha perde isso tudo”, escreveu Thomas Kistner.

É esta a mentalidade predominante entre os responsáveis por decisões importantes para o futuro do futebol — pensam primeiro nos próprios bolsos e depois no interesse da modalidade, como ficou à vista no processo de atribuição dos Campeonatos do Mundo de 2018 e 2022. O jornalista alemão descreveu um clima de ganância sem limites: “Os mais importantes membros da direcção, fiéis a Blatter, já têm uma idade avançada; muitos deles estão a cumprir o seu último mandato. Até o grande presidente já ultrapassou os 70 anos. De repente, ‘Sepp’ tem uma ideia fantástica no congresso de Sydney, no Verão de 2008: os campeonatos mundiais de 2018 e 2022 vão ser atribuídos em simultâneo. Está na hora da festa! Meninos, isso irá dar azo a esquemas, lobbies e fanatismo! Uma dúzia de países de todo o mundo a lutar por dois campeonatos mundiais! De certeza que o cabaz das prendas se vai encher. Aqueles que, dentro do círculo da FIFA, não souberem disto viveram como autistas, alheios ao mundo real, nos anteriores processos de atribuição.”

“Quem quiser ainda pode encher mais uma vez os bolsos antes de ir para a reforma”, acrescentou Thomas Kistner. As escolhas da Rússia e do Qatar para organizar os Mundiais de 2018 e 2022, respectivamente, foram acolhidas com perplexidade. Dois elementos do comité executivo da FIFA tinham sido expulsos ainda antes da votação, na sequência de uma investigação do The Sunday Times segundo a qual surgiam a oferecer o seu voto em troca de dinheiro — um pediu mais de 600 mil euros para um “projecto pessoal” e o outro queria 1,9 milhões para construir uma academia desportiva. O destino de pelo menos metade dos outros 22 votantes não foi famoso: três foram afastados vitaliciamente do futebol e outros quatro estão suspensos; três estão a ser investigados pela justiça; um foi multado.

Perante tudo isto, Blatter sempre insistiu que não houve “compra” das decisões, mesmo que tenha mais tarde admitido ter sido um erro atribuir o Mundial 2022 ao Qatar. “O relatório técnico [da FIFA] indicava claramente que está muito calor durante o Verão, mas apesar disso, o comité executivo decidiu por uma larga maioria”, desculpou-se. A FIFA nunca condenou o emirado pela exploração dos trabalhadores imigrantes envolvidos na construção dos estádios, sujeitos a escravidão, fome, falta de condições de higiene, salários nunca pagos ou em atraso.

UESLEI MARCELINO/reuters

Glória e fortuna

Blatter parece acreditar genuinamente que, se não falar de uma coisa, ela não existe. O filme Paixões Unidas (de Frédéric Auburtin, 2014), encomendado e pago pela FIFA, é elucidativo acerca da forma benevolente como a instituição olha para ela própria. Há momentos vagamente ridículos, como o da criação da federação, quando sete homens à volta de uma mesa dão as mãos e exclamam: “FIFA!”. Ou quando a personagem de Robert Guérin, presidente-fundador da FIFA, se queixa de que o cargo não lhe trará glória ou fortuna. Na altura talvez não, mas actualmente será bem diferente: as remunerações pagas pela FIFA não são públicas, mas no relatório financeiro de 2014 há mais de 115 milhões de dólares (103 milhões de euros) em despesas com pessoal correspondentes a 474 funcionários. A média é superior a 18 mil euros mensais, tendo presente, porém, que nem toda a gente ganhará o mesmo.

O filme passa alegremente por cima dos episódios mais embaraçosos da história do organismo, para retratar um grupo de homens bem-intencionados e apaixonados pelo futebol. “A mera existência do filme é uma prova forte de quão podre e delirante se tornou esta organização”, escreveu Jordan Hoffman no The Guardian, numa crítica em que descrevia Paixões Unidas como “puro excremento cinematográfico”. O único acto à margem das regras que é abertamente retratado no filme está relacionado com a eleição do brasileiro João Havelange para a presidência da FIFA, em 1974, com uma alusão velada à compra de votos das federações africanas. Joseph Blatter surge como delfim do brasileiro, e quando lhe sucede empreende um esforço reformador.

E há também episódios que ganham uma carga de ironia à luz dos factos que vieram a ser conhecidos. A história do primeiro Campeonato do Mundo de futebol é um deles. Em 1925, o então presidente Jules Rimet (Gerard Depardieu) encontra-se com o embaixador uruguaio. O Uruguai quer organizar a competição para assinalar o 100.º aniversário, em 1930. “Um evento desses custa uma fortuna”, diz Rimet. “Sim, mas estamos preparados para pagar”, responde o uruguaio. O diálogo que se segue é digno de ficar registado: “A FIFA é pobre. Mas isso não significa que vamos vender o único tesouro que temos... a honra”. “Não queremos comprar nada. Ficaremos honrados por acolher esta competição. Temos fundos ilimitados. Vocês precisam do dinheiro. Nós precisamos do Campeonato do Mundo. Vamos negociar.”

Blatter é o expoente máximo dessa forma de estar, com o seu aspecto bonacheirão e a sua capacidade de falar sem dizer nada. O suíço preferiu nunca encarar a praga de corrupção instalada no organismo que tutela o futebol mundial. E quando o chão começou a ceder sob os seus pés e o seu estatuto a ser ameaçado, colocou-se no papel de vítima. “Lamento imenso. Lamento. Lamento continuar a servir de saco de pancada. Lamento que, enquanto presidente da FIFA, seja este saco de pancada. Lamento pelo futebol. Lamento pelos mais de 400 elementos que trabalham na FIFA. Lamento. Lamento pela forma como sou tratado neste mundo de qualidades humanitárias. Lamento pela FIFA. E lamento por mim, pela forma como sou tratado neste mundo”, era o que Blatter tinha a dizer após ter sido ouvido, em Dezembro, pelo comité de ética da FIFA, que determinou a sua suspensão por um período de oito anos devido às suspeitas de corrupção num pagamento de dois milhões de francos suíços (cerca de 1,8 milhões de euros) feito a Michel Platini, no ano de 2011, relativo a serviços prestados à FIFA pelo francês, alguns anos antes. “O comité [de ética] não tem o direito de decidir contra o presidente”, indignava-se.

Retratado como o homem de mãos limpas, que protege os seus mas é traído por eles, o suíço é o homem inocente e cândido num mundo corrupto. Ele é a vítima, mas mesmo assim nunca esquece a família. “Em todas as associações há gente honesta e traidores. E há aqueles que podem ser qualquer das duas. Tudo o que fiz até agora foi para o bem do futebol. E para o bem da família. Família que protegerei custe o que custar”, afirma a certa altura do filme a personagem de Blatter, representada por Tim Roth.

A cúpula dirigente da FIFA é, como gostam de autodefinir-se, a “família do futebol”. Em toda a sua disfuncionalidade, lembram uma família mafiosa, em que se fazem propostas irrecusáveis e se cuida dos negócios acima de tudo. Se, como se diz, o futebol é o ópio do povo, a FIFA é a igreja que celebra essa religião mundial. Actualmente, 209 associações fazem parte do organismo que tutela o futebol — as Nações Unidas têm 193 estados-membros. Desde a fundação, em 1904, a FIFA teve oito presidentes eleitos (Issa Hayatou ocupa agora o lugar, mas apenas de forma interina) — no mesmo período, passaram pelo Vaticano dez Papas.

Blatter chegou à FIFA com 39 anos. Está na presidência há 18 JEAN-BERNARD SIEBER/AFP
João Havelange e Blatter: privilégios e clima de ganância mantiveram-se com a passagem de testemunho na presidência da FIFA Reuters
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