De Bach a Woody Allen, um mapa teatral

Marcado com intensidade pela música e pelo humor desconcertante, no teatro de Ricardo Neves-Neves as referências vêm da música barroca ou do cinema com queda para o dispate.

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A sua primeira peça foi escrita cinco minutos depois de ter acabado de ler uma peça de Woody Allen. De certa forma, é como se Allen ainda não o tivesse deixado pegar no sono

Por estes dias, Ricardo Neves-Neves anda com a música Night and Day, dos Hot Chip, no telemóvel. Um tema com uma certa “cavalgada”, como lhe chama, que há-de ser o motor para a escrita de uma nova peça um dia destes. “Isto dá-me logo uma forma de entrar na cena, de texto, do que pode acontecer.” E aquilo que lhe interessa em Night and Day, essa manta electrónica cheia de genica, dura precisamente 30 segundos, antes da entrada da voz que arruína por completo a música. Como noutras ocasiões da sua escrita, Neves-Neves monta um loop do excerto que o espicaça e deixa-o repetir-se, impondo-lhe um ritmo para a escrita e para as ideias aparecerem em atropelo. Tal como acontece com os Hot Chip, esta sugestão acontece frequentemente de forma acidental – uma música está a tocar, ele saca do telemóvel, lança a aplicação Shazam, identifica o tema e fica com ele guardado no YouTube como futuro material de trabalho. A propósito, Neves-Neves não conhece os Hot Chip.

“Há sempre uma coisa saltitona que me marca o ritmo”, admite. Ao escrever Entraria Nesta Sala, texto inspirado nas comédias clássicas do cinema português em que Nossa Senhora encomendava aos Pastorinhos o assassínio de Hitler, não usou propriamente uma peça musical “mas havia sempre um taca-taca-taca-taca” em fundo. Em Batalha de Não Sei Quê valeu-se de um lied de Schubert e uma peça composta por Michael Nyman tendo por base Don Giovanni com a intenção de “buscar uma zona germânica” para a peça. A letra pouco interessa – o que conta são o ritmo, a instrumentação, a sonoridade.

De uma forma mais obsessiva, A Porta Fechou-se e a Casa Era Pequena foi criada como exercício de escrita a partir da música. “Foi numa fase em que estive um ano à procura de casa em Lisboa, porque as casas estavam muito caras e então decidi fazer uma peça sobre essa experiência. A cada casa atribuí uma música.” Nesse seu segundo texto que desvendou o tom de lenga-lenga em que decorriam os encontros entre as suas personagens, o cliente e o agente imobiliário, uma habitação popular foi escrita ao som do fado, uma casa cheia foi estimulada por música barroca, uma casa bidimensional valeu-se de uma peça para voz e um instrumento, uma casa em chamas teve como banda sonora uma gravação de “batuques africanos”. “Acabam por ser jogos que faço comigo”, resume. “Sou filho único, habituei-me a brincar sozinho.”

Tendo estudado piano até aos 21 anos e crescido com uma admiração particular pela música barroca e por Bach em particular (Bach escuta-se também no rádio da Batalha de Não Sei Quê), não forçou a entrada da música no seu teatro mas não ignora que essa invasão norteia os mandamentos rítmicos a que os seus espectáculos obedecem, lendo os textos à procura de tónicas que se repetem. Dos seus actores, diz-se muitas vezes que cantam o texto. Só que para o encenador e autor nada há de negativo nisso – “se conseguíssemos cantar o texto todos os dias igual isso era muito fixe; há pessoas que acham isso abominável, eu gosto muito.”

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Nuno Ferreira Santos

 A ligação aos autores clássicos teve também em Sebastião e Sebastiana (Bastien und Bastienne, no original), de Mozart, uma importante primeira experiência na encenação de uma ópera. Esse registo a que gostava de voltar, encontrou-o em doses perfeitas de absurdo e musicalidade no encenador suíço Christoph Marthaler, “que também é ridículo e tem uma cabeça impressionante”. “Vi-o no Festival de Avignon e há muito tempo que não me divertia tanto a ver um espectáculo. Fui investigar, percebi que ele encena teatro mas também ópera e pensei ‘Então é como ele que quero ser’. É o único encenador que me faz poupar uns dinheiros para viajar e ir de propósito ver espectáculos. A crítica diz que ele é um encenador de musicais que anda a tentar enganar-nos. Em resposta, ele fez o My Fair Lady.” E, sem o forçar, deixa ficar no ar que se Marthaler teve a sua My Fair Lady, ele teve a sua Mary Poppins.

Acordado por Woody Allen
A par da música, o teatro de Neves-Neves é atravessado por uma relação próxima com o humor. Tendo pudor em falar de teatro do absurdo, não nega a sua admiração por textos de Ionesco e Beckett, embora confesse não saber “como é que aquilo se faz”. “Acho que consigo trabalhar mais o absurdo num texto que não é suposto ser absurdo”, responde. E como as categorias não o convencem, prefere eleger em abstracto o non-sense como coordenada fundamental para o seu teatro. Daí também a atenção obsessiva aos tempos e ao ritmo, uma vez que encontra na comédia uma enorme dificuldade devido a essa rigidez. Ou, como prefere explicar, “a comédia está para o teatro como as sobremesas para a cozinha – nos guisados pode inventar-se, mete-se uma cenoura a mais ou a menos, mas num bolo não dá para alterar o número de ovos ou a temperatura do forno.”

Por isso revê-se em séries televisivas como Alô Alô e Absolutely Fabulous, Herman José e os Monty Python, e no cinema de Woody Allen – “a cena do Annie Hall em que ele fala para a câmara ou o ridículo do ABC do Amor quando se vestem de espermatozoides foram coisas extraordinárias de ver” enquanto adolescente. O Regresso de Natasha, a sua primeira peça, foi escrita “cinco minutos depois de ter acabado de ler uma peça de Woody Allen e apesar de ser diferente foi influenciada pelo mesmo estado de espírito”. A peça, diz, estava-lhe entalada e, apesar das notas acumuladas, não conseguia desbloquear, até que Allen o impediu de dormir numa certa madrugada e escreveu a peça de jacto. De certa forma, é como se Allen ainda não o tivesse deixado pegar no sono.

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