Andrew Solomon: a arte de ser diferente

O escritor e ensaísta norte-americano tem pela primeira vez uma das suas obras publicadas em Portugal. O Demónio da Depressão- Um Atlas da doença chega com 15 anos de atraso mas mais vale tarde do que nunca. Qualquer altura é boa para se descobrir um autor como este.

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Andrew Solomon na Festa Literária Internacional de Paraty em 2014 Walter Craveiro/FLIP
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George no momento em que subiu ao palco e se sentou no colo do pai Walter Craveiro/FLIP

Quando está em cima de um palco, num festival literário ou nas várias TED Talks em que já participou, Andrew Solomon prende a nossa atenção até ao fim. E é muitas vezes aplaudido de pé. Foi assim que aconteceu quando esteve na Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) em 2014.

O escritor e ensaísta norte-americano estava no Brasil a lançar o seu mais recente livro, Far from the Tree: Parents, Children, and the Search for Identity – que no próximo ano estará nas livrarias portuguesas com o título Longe da Árvore – mas também a reeditar o seu best-seller, O Demónio da Depressão - Um Atlas da doença, que o tornou famoso quando foi publicado em 2001 e está traduzido em 24 línguas. Vencedor do National Book Award e finalista do Pulitzer, o livro acaba de chegar às livrarias portuguesas editado pela Quetzal com 15 anos de atraso. Mais vale tarde do que nunca, qualquer altura é boa para se descobrir um autor como este.

Naquele dia na festa literária brasileira, o escritor que toda a sua vida tem sido defensor dos direitos LGBT, tinha o filho George, na altura com cinco anos, e o marido John Habich sentados na primeira fila da plateia. Estavam a ouvi-lo contar a sua história, tal como todos nós, como se fosse a primeira vez.

Andrew Solomon, que nasceu em Nova Iorque, em 1963, estudou língua e literatura inglesa na Universidade de Yale e fez um doutoramento em psicologia em Cambridge, contou que o intrigava que tanto tempo depois da publicação daquela obra continuasse a receber cheques de direitos de autor vindos do Brasil relativos às vendas do livro. “A mim, como habitante da América do Norte, parecia-me isso muito peculiar. Porque eu achava que, no Brasil, toda a gente era feliz o tempo todo. Fiquei triste ao dar-me conta de que isso não é verdade, mas fiquei feliz porque as pessoas deprimidas estavam a dedicar algum tempo ao meu livro."

Isto porque Andrew Solomon acredita que conhecimento é poder. Quanto mais conhecimento se tiver sobre a depressão, mais facilmente se percebe o que nos está a acontecer e melhor se consegue lidar com isso. O escritor sempre considerou que os anos em que esteve deprimido eram os anos desperdiçados da sua vida, e embora diga repetidamente que a escrita deste livro não foi catártica e que foi perturbador escrever sobre a sua própria depressão, o facto de o livro existir é para ele uma espécie de redenção dos seus anos perdidos. “Tinham servido para alguma coisa”, confessa Andrew Solomon que ainda toma medicação e, por vezes, tem recaídas.

Uma obra que conjugasse tudo
Foi em 1994, na altura da publicação do seu romance A Stone Boat – bem recebido pela crítica e onde também falava sobre a doença e a morte precoce da sua mãe –, que Solomon entrou naquilo que parecia ser uma depressão catastrófica. “No princípio não percebi de que se tratava. Sempre tinha querido publicar um romance, estava a correr bem e eu não sentia nada. Tinha uma sensação de vazio. O oposto da depressão não é a felicidade, mas a vitalidade. O que parecia que tinha desaparecido de mim naquele período era a vitalidade e eu ia ficando pior e pior."

Lembra-se de acordar e de pensar que tinha de se levantar e de ir tomar banho, de visualizar isso – sair da cama, ir até à casa de banho, ligar a água, procurar o sabonete, de se ensaboar – e tudo isso lhe parecia uma tarefa impossível. “Sabemos perfeitamente que estamos a ser ridículos, que as outras pessoas têm a capacidade de se levantar e tomar banho sem pensar nisso dois segundos sequer, mas temos uma sensação da terrível dificuldade de tudo. Lembro-me da ansiedade a instalar-se, da sensação de me sentir aterrado em todos os momentos mas nunca saber de que é que tinha medo. Até que um dia não me conseguia mexer e achei que tinha tido um AVC”, contou em Paraty.

Lembra-se de estar deitado na cama e de olhar para o telefone ao seu lado, pensar que tinha de chamar alguém e ter ficado três horas a pensar que tinha de pegar no telefone sem conseguir fazê-lo. Ao fim desse tempo o telefone tocou. “Felizmente era o meu pai, disse-lhe que estava péssimo e ele veio ter comigo. Assim comecei o longo caminho da recuperação. Tomei medicação, fiz psicoterapia, achei que estava bom, deixei de tomar a medicação, fiquei pior, voltei à medicação, fiz esse ciclo de subidas e descidas inúmeras vezes até que finalmente consegui emergir de toda essa angústia e de toda essa escuridão.”

Quando Andrew Solomon melhorou olhou à sua volta e percebeu que já se tinham escrito muitos livros sobre depressão, mas talvez faltasse um. Havia livros de poesia que descreviam as nuances da síndrome, livros de memórias onde as pessoas contavam as suas experiências, obras de ciência que descreviam a bioquímica e os tratamentos, mas ele não encontrava nenhum livro que conjugasse tudo isto. Por isso decidiu escrever um. Falou com pessoas que estavam deprimidas, falou com médicos, políticos e legisladores. Queria desmistificar a ideia de que a depressão é uma doença moderna que afecta a classe média ocidental.

“O que eu queria mesmo entender com o livro era porque é que algumas pessoas têm o que parece ser uma depressão profunda mas ainda assim têm a capacidade, entre os episódios de depressão, de terem vidas ricas, boas e que valem a pena ser vividas. Enquanto outras, têm o que parecem ser depressões mais suaves e não têm essa capacidade. O que faz com que algumas pessoas consigam viver bem através de uma depressão e outras não?”

A identidade da diferença
Depois de escrever O Demónio da Depressão Andrew Solomon decidiu que queria trabalhar noutra direcção. “Quando estava à procura desse novo território o meu editor do New York Times fez-me uma encomenda para que escrevesse um artigo sobre a cultura das pessoas que não conseguem ouvir. Achei muito interessante. Mergulhei nesse universo, frequentei clubes de surdos, grupos de teatro e de poesia de surdos e até assisti a uma eleição da Miss América surda. E à medida que me fui aproximando desse universo, percebi que a surdez na verdade é uma cultura.”

E foi a partir daí que partiu para a escrita do seu mais recente livro Longe da Árvore, sobre pais, filhos e a procura da identidade. Um livro que o jornal The Guardian classificou como "um estudo sobre pais que tentam educar crianças ‘complicadas’”, mas que “acaba por ser uma afirmação do que é ser humano.” Uma pesquisa sobre o universo da diversidade em famílias com filhos “diferentes” – surdos, anões, portadores de síndrome de Down, autistas, esquizofrénicos, portadores de deficiências múltiplas, crianças prodígio, filhos que resultaram de uma violação, crianças transgénero e delinquentes – e cujo título faz referência ao ditado de que os frutos caem perto da árvore, no sentido de que os filhos tendem a ser parecidos com os seus pais.

Nessa investigação, apercebeu-se que muitos surdos são filhos de pessoas que ouvem e que os seus pais tentam tudo para que os filhos funcionem, durante o máximo de tempo possível, dentro do mundo dos que ouvem. Por isso eles só descobrem a cultura da surdez na adolescência ou ainda mais tarde. “Lembrei-me como isto é semelhante à experiência de jovens gays, que normalmente têm pais que não o são e que tentam fazer com que os seus filhos funcionem naquilo a que eles chamariam de ‘mundo normal’. Por isso só acabam por descobrir o mundo gay na adolescência e é uma grande revelação para eles.”

E lembrou-se da sua própria infância e do momento, em devia ter seis anos de idade, e a mãe o levou e ao irmão a uma loja de sapatos. Quando acabaram as compras o senhor que os atendeu disse-lhes que podiam escolher um balão. O irmão de Andrew escolheu o vermelho e ele queria um cor-de-rosa. A mãe disse-lhe: “Não queres escolher antes o azul?” Respondeu-lhe que queria o rosa. “A tua cor favorita é o azul!”, lembrou-lhe a mãe com veemência. “É um facto que a minha cor favorita hoje em dia é o azul mas ainda assim sou gay”, confessa Andrew Solomon, acrescentando a rir que isso dá uma bela ideia da verdadeira influência que uma mãe tem sobre uma criança.

E ter sido educado dentro de uma família que tentou aceitá-lo como ele era, fez com que Solomon reflectisse muito sobre diferença e sobre identidade. À medida que escrevia Longe da Árvore –  sobre a diferença entre o amor, que deve existir desde o início entre pais e filhos, e a aceitação, que é uma coisa que demora até se estabelecer entre pais e filhos, mesmo que as crianças não sejam surdas ou gays, não sejam diferentes – percebeu que uma pessoa com uma diferença passa por três fases: tem de se aceitar a si própria, tem de ser aceite socialmente e tem de conseguir ser aceite em família. E todas dependem umas das outras. “É extraordinário como em tantas das famílias que entrevistei, com filhos com tantas diferenças profundas, houvesse tanta coragem e força. Será delírio? Será que se convencem? Mas com o passar do tempo percebi que havia realmente autenticidade nessas experiências.”

Por isso, enquanto estava a escrever este livro Andrew Solomon decidiu ter os seus próprios filhos. Perguntavam-lhe como pôde tomar a decisão de os ter a meio da escrita de um livro precisamente sobre tudo o que podia acontecer de errado. Explicava que este não é um livro sobre tudo o que pode acontecer de errado mas é um livro sobre a imensa alegria que as pessoas retiram dessa experiência, mesmo quando tudo parece perdido.

Então construiu uma família... diferente. “O meu marido John Habich é o pai biológico de dois filhos, Oliver e Lucy, com amigas lésbicas que vivem em Minneapolis. Uma das minhas amigas da universidade, que se divorciou, perguntou-me se seria uma boa ideia termos um filho e temos uma filha, Blaine. As duas vivem no Texas. E eu e o meu marido John queríamos ter um filho nosso, para viver connosco todos os dias, então temos o George. Eu sou o pai biológico e a nossa substituta para a gravidez foi a Lauren, a mãe lésbica dos dois filhos biológicos do meu marido. E fico feliz por vos dizer que George está aqui na plateia. Lá vem ele... Somos cinco pais de quatro crianças espalhadas por três estados norte-americanos”, disse na FLIP. Soltou uma gargalhada. E foi aplaudido de pé.

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