O Irão está de volta. Primeiros efeitos

Para os europeus e asiáticos, ”começa a corrida à última mina de ouro da Terra”

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Antes da política, olhemos os negócios. O Irão veio às compras na Europa. A visita do Presidente Hassan Rouhani a Roma e Paris foi tema de grande excitação: não é todos os dias que as indústrias europeias assinam contratos no valor de 17 mil milhões de euros (Itália) ou de 15 mil milhões (França), incluindo a compra de 100 Airbus. Roma quer colocar-se na “pole position” em Teerão e, segundo Rouhani, “a Itália é para nós o país mais importante da Europa” — até por razões históricas que remontam aos anos 1950 e à luta contra o cartel das majors do petróleo, “as sete irmãs”. Matteo Renzi foi convidado a visitar o Irão.

Em Fevereiro, haverá outra visita muito especial, desta vez para “comprar” e não para “vender”. Uma delegação chefiada por Miguel Arias Cañete, comissário europeu do Clima e da Energia, desloca-se ao Irão para discutir gás, petróleo e assistência técnica na área da energia. O gás iraniano parece a melhor alternativa da UE perante a sua dependência energética da Rússia. Começa a passar-se dos negócios para a geopolítica.

As repercussões do acordo de 2015, entre o Irão e o grupo 5+1 (EUA, China, Rússia, França, Grã-Bretanha e Alemanha) ainda não são plenamente claras. O analista libanês Hisham Melhem, da televisão Al Arabiya, resume o que é possível entrever: “O acordo nuclear não marca a emergência do Irão como potência hegemónica regional, pois faltam-lhe requisitos económicos e militares para tal estatuto. No entanto, assinala o reconhecimento, pelos Estados Unidos e outras grandes potências, da crescente importância do Irão como Estado e potência regional com capacidade e interesses que não podem ser ignorados nem ser facilmente intimidado.”

Rouhani foi eleito presidente com a promessa de negociar o programa nuclear e o levantamento das sanções. A rapidez com que o Irão cumpriu os acordos surpreendeu alguns analistas americanos, que criticavam Obama por apostar que um país do Médio Oriente pudesse ter um “comportamento racional”. O Irão tinha um interesse vital e foi racional. Os moderados provaram ao ayatollah Khamenei que a política de intransigência e provocação do ex-presidente Ahmadinejad apenas isolou e enfraqueceu o Irão. E os moderados são tão ou mais nacionalistas do que os conservadores. Rouhani, um veterano da Revolução Islâmica, jovem colaborador do ayatollah Khomeini e depois adjunto do antigo presidente Ali Rafsanjani, só poderia negociar com o aval de Khamenei.

A “mina de ouro”
Delegações governamentais e empresariais da Europa e Ásia aterram desde há meses em Teerão, na mira de grandes negócios: o Irão tem de reconstruir a sua economia de alto a baixo. Em Julho esteve lá uma delegação alemã chefiada pelo vice-chanceler Sigmar Gabriel, com as maiores companhias do país, da Siemens à Mercedes Daimler. E também o presidente chinês, Xi Jinping. “Começou a grande corrida àquilo que um diplomata ocidental designou como ‘a última mina de ouro da Terra’”, escreve o New Yorker.

Por quê mina de ouro? É um mercado de 80 milhões de habitantes, 50% com menos de trinta anos, uma economia devastada em que faltam bens essenciais e em que a indústria, incluindo a petrolífera, precisa de enormes investimentos. Mas com grandes trunfos, como uma população educada, uma elite técnica e um bom sistema de ensino. É o único país da região em que 60% dos licenciados são mulheres. Tem por trás os 25 séculos da cultura persa.

As potencialidades são enormes: é o segundo país do mundo em reservas de gás, o quarto no petróleo, o maior produtor de automóveis e de aço do Médio Oriente, com um sector tecnológico moderno mas asfixiado pelas sanções. Os economistas iranianos falam em repetir o boom económico turco do fim dos anos 1990 e, se tudo correr bem, num crescimento de 8% nos próximos cinco anos. A Economist admite que, em dez anos, o Irão possa superar o PIB da Turquia e da Arábia Saudita.

Economistas iranianos mostram-se satisfeitos com a queda do preço do petróleo, na medida em que estimulará a diversificação e a modernização da economia e fortalecerá o sector privado. “No Irão sempre se falou na necessidade de diversificação em relação ao petróleo e podemos ver aqui um efeito paradoxal das sanções”, escreve o especialista francês Thierry Coville. “Hoje, existe um verdadeiro consenso sobre o assunto, no governo e no sector privado.”

Outro lado fascinante que o Financial Times sublinha é a perspectiva de um novo terreno de competição entre a Arábia Saudita e o Irão: ambos estão a ensaiar uma diversificação das economias e a abertura ao exterior contra a dependência do petróleo. Conclui: os sauditas fariam bem em se preocuparem com o Irão “mais na área económica do que na arena diplomática ou militar”.

Esta é a abordagem optimista, que tem um reverso. Quase 80% da economia é controlada pelo Estado e por “fundações” ligadas aos conservadores, com destaque para os Guardas da Revolução, para um organismo dependente de Khamenei e outros de entidades religiosas. As sanções não são o único factor de bloqueio: também os dispendiosos projectos populistas, o desperdício e a corrupção.

As estátuas escondidas
No Irão há muitos centros de poder. Se os reformadores controlam a presidência e o governo, os conservadores dominam o parlamento e a Justiça. Os reformadores têm o apoio popular, os outros têm a força. Entre eles, Khamenei arbitra. Se na política externa (à excepção de coisas como o Hezbollah e organizações similares, da jurisdição dos Guardas da Revolução) Rouhani pode agir, sobre as liberdades individuais apenas “faz declarações”, até porque a Justiça é dominada pelos rivais. A abertura na esfera internacional só lentamente se traduzirá numa abertura interna. A grande pergunta é: o sucesso de Rouhani nas sanções modificará a seu favor a relação de forças dentro do regime?

O caso das estátuas escondidas dos Musei Capitolini cobriu a Itália de ridículo mas é também sintomático das contradições iranianas. O ministro italiano da Cultura, Dario Franceschini, disse que havia maneiras mais hábeis de resolver o problema sem “tapar” a arte italiana. Ao contrário do que se disse, não se tratou de proteger a sensibilidade de Rouhani, homem que se doutorou em Glasgow e conhecerá muitos museus. “Qual é a realidade? É simplesmente política” e iraniana, observou um jornalista italiano. Rouhani não podia ser fotografado ao lado de um nu ou numa mesa com garrafas de vinho. Em 1999, uma foto do antigo presidente Mohammad Khatami, num jantar em que havia vinho na mesa, foi o pretexto para uma feroz e sórdida campanha dos conservadores contra as reformas.

No dia 26 de Fevereiro há no Irão eleições legislativas e, sobretudo, a eleição vital da Assembleia de Peritos, que elegerá o próximo Guia Supremo e poderá determinar o futuro do Irão. Está em curso uma guerra para eliminar os candidatos reformadores. Rouhani não quis correr riscos.

Se a asneira foi italiana, fica a questão iraniana. A abertura do Irão só será plena quando se libertar da tutela de fanáticos e aceitar as outras culturas.

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