Sim, as Recomendações Alimentares têm base científica. Mas podem e devem ser melhoradas

Vamos substituir o velho fanatismo que proibia o consumo de colesterol (ovos), baseado numa ciência pobre, por um novo fanatismo de sinal contrário?

(A propósito do artigo, “Dieta, há alguma ciência nisto?” de Alexandra Prado Coelho, PÚBLICO, 17/1/2016)

Foram publicadas as últimas Recomendações Alimentares Americanas (Dietary Guidelines 2015-2020). […] São semelhantes às anteriores; excepto nesta grande modificação: os alimentos com colesterol (ovos) passaram a ser tolerados quando antes eram muito limitados. Foi uma mudança acentuada que provocou perplexidade e que a imprensa generalista se encarregou de alardear: “a credibilidade da instituição ficou severamente comprometida”, “as pessoas não toleram aconselhamentos tão contraditórios”.

[…] Se dantes as Recomendações eram dogmas da ciência, inatacáveis, hoje, ao revelarem algumas fragilidades, deparam-se com um despertar sobressaltado do sentido crítico da população e, na imprensa não médica quase passaram a impostoras, trapaceiras. De fiéis fidelíssimos (embora pouco cumpridores), nós passámos a iconoclastas. Mas penso que há algo mais que este sobressalto crítico novo e exaltado. Ressurgiram recentemente com vigor insólito, os defensores de que mais gorduras na dieta (incluindo gordura saturada, isto é carnes vermelhas e produtos lácteos gordos) é que melhoram a saúde, o bem-estar e o vigor da população. É uma posição radical, contra as Recomendações Nutricionais clássicas e que deve deliciar os industriais de carnes e lacticínios.

Em 2014 surgiu o livro da jornalista americana Nina Teicholz, “The Big Fat Surprise. Why Butter, Meat & Cheese Belong in a Healthy Diet”. Na apresentação do livro da jornalista refere-se que, “Tudo o que pensávamos sobre as gorduras da alimentação está errado. Nos últimos sessenta anos fomos aconselhados a baixar o teor de gordura da alimentação e esta experiência descontrolada em toda a população, levou a consequências desastrosas para a nossa saúde.” “Mais, não menos, de gordura na alimentação. “A nova ciência mostra que durante décadas temos sido induzidos desnecessariamente a evitar carne, queijo, leite e ovos, mas que podemos, sem receio, trazer as "gorduras inteiras" de volta às nossas vidas (os queijos cremosos, os bifes magníficos)”. […]

Em Setembro de 2015, Nina Teicholz publicou na revista the British Medical Journal o artigo, “The scientific report guiding the US dietary guidelines: is it scientific?” (Há alguma ciência nas Recomendações Alimentares americanas?). Acusou as Recomendações de terem usado padrões científicos fracos, com falta de métodos rigorosos de revisão, de dependerem de organismos profissionais fortemente apoiados por empresas de alimentos e de medicamentos, de ignorarem muito da actual ciência relevante. […]

Este artigo foi financiado pela fundação Laura e John Arnold (um casal de bilionários), que também financia a fundação the Nutrition Coalition, de que Nina Teicholz é membro do conselho. The Nutrition Coalition é um grupo de pressão, tem lobistas em contacto com altos funcionários do Congresso e da Casa Branca. Nina Teicholz é acusada de ser, não uma investigadora, não uma jornalista imparcial, mas uma activista, impulsionadora do grupo que defende vigorosamente mais carne na alimentação. […]

As polémicas de 2015 revelaram que a Nutrição não é afinal uma ciência definitiva, que tem fragilidades e que está sujeita a pressões fortíssimas de grupos de interesses poderosos. […] Dada a dificuldade ou impossibilidade de uso de ensaios clínicos mais robustos cientificamente, muitas Recomendações dietéticas são apoiadas em estudo de dados observacionais cujo nível científico é mais fraco. Basearam-se muito em inquéritos, auto relatos dos participantes sobre os seus hábitos Alimentares passados (evocam o que comeram de semanas a anos atrás, mas a memória é muito falível).  […] prevalece no entanto a posição consensual de que o uso de múltiplas fontes de dados permite validar os dados dos inquéritos. […]

Os estudos de nutrição tendem a atrair a atenção dos meios de comunicação de forma desproporcionada a outros estudos científicos. […] Quando uma manchete apregoa uma nova descoberta que torna chocante determinado paradigma da nutrição, deve-se duvidar muito criticamente dessa história espectacular, que atrai os compradores de jornais. Deve-se questionar. São estudos rigorosos? Os seus resultados já foram confirmados por estudos semelhantes? São imparciais? (“Unite For Sight”).

Alexandra Prado Coelho (APC) é uma pessoa e jornalista que admiro/respeito. O seu artigo, “Dieta: Há Alguma Ciência Nisto?”, parece apressado, pouco reflectido. Divide-se em dois sub-artigos, um sobre Portugal e o outro sobre as Recomendações Alimentares norte-americanas 2015-2020. Neste segundo sub-artigo, APC ocupa 60% com a divulgação das críticas a estas Recomendações Alimentares, dos quais, ocupa mais de metade a denunciar uma mudança de posição em relação ao consumo de colesterol (ovos). APC baseia-se em citações de artigos de jornalistas americanos e essencialmente (até no título do artigo) nas ideias da jornalista Nina Teicholz. Refere-se repetidamente à ideia simplista de que “cortar na gordura ou nas calorias deixou (os americanos) mais gordos e mais doentes do que nunca”.

Acredita a sério de que “cortar na gordura ou nas calorias” engorda? Não será a obesidade a consequência do contrário, do excesso alimentar, da gula, da saciedade insaciável da nossa época? Acredita mesmo que os americanos estão mais doentes do que nunca? Ignora que a esperança de vida nos USA tem subido cerca de 2,4 meses em cada ano desde 1973 e que ainda não deu sinais de diminuir?

APC critica as “décadas de conselhos contraditórios” das Recomendações e simultaneamente critica-as por serem “virtualmente idênticas às dos últimos 35 anos”. Cerca de 1/3 deste 2º sub-artigo é ocupado a divulgar dados dum artigo do Instituto de Pesquisa do banco, que defende um consumo mais alto de gordura (leia-se carnes e lacticínios gordos), contrariando assim as Recomendações dietéticas clássicas. O objectivo do Crédit Suisse é fornecer aos seus cliente e unidades de negócios, conhecimentos de ponta sobre produtos competitivos. O artigo de revisão refere basear-se em muitas fontes científicas, mas não as cita e assim não podemos confrontá-las.

Concordo com a crítica do editorial do PÚBLICO às campanhas avulsas, de base pseudo empírica (uma praga) e não raras vezes influenciadas pelos interesses dos vários lobbies alimentares. Substituí empírica por pseudo empírica; a ciência médica actual é essencialmente de base empírica e ainda pouco científica/racionalista. Dado que se conhece pouco ainda das causas e dos mecanismos da maioria das doenças, a medicina tem de continuar a basear-se em provas colhidas da experiência (empírica).

A questão que pretendo salientar é se vamos substituir o velho fanatismo que proibia o consumo de colesterol (ovos), baseado numa ciência pobre, por um novo fanatismo de sinal contrário, em defesa agora das gorduras, carnes vermelhas, baseado noutra ciência pobre? Passamos ao “Fogo sobre as Recomendações Alimentares” de uma geração? […]

Médico Internista aposentado, filomsousa@netvisao.pt

 

Resposta

1. A questão fundamental levantada nas críticas que foram feitas às Recomendações Alimentares norte-americanas é a de terem levado à substituição da gordura por açúcares e de isso poder explicar o facto de a obesidade e a diabetes tipo 2 terem disparado nos EUA a partir da década de 1980. O açúcar (nomeadamente o “escondido”) não é referido no texto mas parece-me ser a questão central no debate norte-americano: cortou-se demasiado na gordura e foi-se tolerante em relação ao açúcar ou não?

2. O artigo não defende o consumo de gorduras e refere, no texto e os quadros que o acompanham, o excesso de calorias ingeridas per capita e a necessidade de redução destas.

3. O artigo cita diversas fontes (entre as quais Pedro Graça, do Programa Nacional para a Alimentação Saudável, que contextualiza a questão e que é citado em três parágrafos) e não apenas Nina Teicholz, que é citada em dois parágrafos.

4. As “críticas” que me são atribuídas são no meu texto referência a um trabalho e uma citação: “décadas de conselhos contraditórios” refere-se a um vídeo do The New York Times” e “virtualmente idênticas às dos últimos 35 anos” é uma citação de Nina Teicholz.

5. O trabalho inclui três (e não dois) textos, um deles sobre Portugal (pág. 28) no qual se diz que o consumo de gordura no país é considerado excessivo.

Alexandra Prado Coelho

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